Crítica | Armageddon Time (2022)

Nota do Filme:

Desde os primeiros minutos, Armageddon Time deixa claro que é um filme que vai abordar memórias muito íntimas e pessoais. A sequência inicial é longa e até um pouco desconfortável, mas, nela, o longa consegue estabelecer o sentimento nostálgico de uma fase em que a vida ainda é fácil e inconsequente. Nela, assistimos Paul (Banks Repeta) em seu primeiro dia de aula no sexto ano de um colégio público no subúrbio de Nova York. Um professor pouco amigável dá boas-vindas aos alunos e fala sobre a importância de crescer e as responsabilidades que vêm com a idade. Paul, é claro, ainda não entende o que está por vir: as dores de descobrir o que é moralmente correto, as obrigações, o preconceito, a morte. Armageddon Time tem seus defeitos, mas consegue absoluto sucesso em resgatar a brutalidade que, por vezes, marca o encontro entre a infância e a vida real.

Armageddon Time é, de fato, sobre o fim de uma era e o começo de tudo. O filme é ambientado no ano de 1980, durante as eleições que tornariam Ronald Regan o 40º presidente dos Estados Unidos, justamente um mandato que colocaria em jogo conceitos muito diferentes de governo. É neste cenário altamente polarizado que assistimos à família Graff viver momentos decisivos e bastante complexos. Através do olhar de Paul, um menino sonhador e inconsequente, o longa discute falhas no sistema escolar americano, relação entre pais e filhos, racismo, antissemitismo, o sonho de se trabalhar com o que gosta. Durante o filme, somos transportados para uma história bastante cotidiana, formada por memórias nítidas que carregam uma profundidade tão palpável quanto a vida de cada um de nós.

O responsável por estas recordações é o diretor, roteirista e produtor James Gray, que faz aqui, provavelmente, o trabalho mais pessoal de sua carreira. Elogiado por Ad Astra (2019) e Z: A Cidade Perdida (2016), longas que exploram realidades muito diferentes, é visível o quanto o realizador se sente à vontade ao retratar Nova York em seus filmes. Seja em Era Uma Vez em Nova York (2013), Amantes (2008) ou Os Donos do Mundo (2007), James Gray consegue alcançar um nível de ode e intimidade muito característicos quando se trata de colocar a cidade natal em cena. Com Armageddon Time não poderia ser diferente, ainda mais pelo tom nostálgico e referências tão específicas à infância da classe média daquela época.

Banks Repeta e Jaylin Webb em cena de Armageddon Time.

Gray é um diretor que tende a receber opiniões diversas quanto à maneira mais lenta com que dirige seus filmes. Porém este, em específico, não poderia ser filmado de outro jeito. Para aqueles que curtem um drama familiar, Armageddon Time é um prato cheio justamente porque acompanha o dia a dia da família Graff sem pressa. Tanto direção quanto roteiro se demoram ao estabelecer a relação entre os membros da família, escolhe a dedo aquilo que vai ser mostrado e o que fica na nossa imaginação, é realmente um trabalho cuidadoso e até bastante imersivo. É verdade que o roteiro não é tão redondinho quanto deveria ser, ficam alguns questionamentos e pontas soltas, alguns personagens poderiam ganhar um pouco mais de desenvolvimento, mas este não deixa de ser um projeto dos mais tocantes.

Apesar de se passarem em épocas e lugares completamente diferentes, Armageddon Time lembra muito o recente Belfast (2021), criado a partir da memória do ator, diretor e roteirista Kenneth Branagh. O filme de Branagh encantou pelo tom alegre e até cômico com que retratou a infância de um menino em meio ao conflito religioso que tomou a Irlanda do Norte nos anos 60. O pequeno universo em que vive Buddy parece intocável, a guerra que acontece do lado de fora não parece interferir tanto em suas aventuras e descobertas. Mas ao contrário dele, Armageddon Time é um autêntico “coming of age”, um filme sobre amadurecimento, e como tal não deixa de abordar as dores que vem com o crescimento.

Gray não tem intenção de disfarçar cenas duras e até cruéis, isso sem falar nos temas delicados que permeiam a história. Enxergar o mundo pelos olhos de Paul é ver um garoto criativo e cheio de vida ter problemas sérios em obedecer e respeitar os pais, é ter a impressão de nunca ser realmente compreendido, de achar que as consequências de cada escolha não serão realmente duras. É uma visão bastante dolorida do que é amadurecer, mas ainda assim Armageddon Time consegue estabelecer uma conexão com o espectador justamente por ser tão real e palpável. É possível se identificar com Paul e sua família de um jeito que o filme de Branagh, por exemplo, não conseguiu fazer. O campo da fantasia, aqui, é muito mais pé no chão e aqueles que preferem um drama menos bonito e polido ficarão felizes com o novo trabalho de Gray.

Banks Repeta e Anne Hathaway em cena de Armageddon Time.

Ainda que a direção seja um grande destaque, é a atuação de Banks Repeta o que existe de mais impressionante em Armageddon Time. Sua entrega é gigante, a forma como sua presença preenche os momentos durante o filme é de deixar qualquer um embasbacado. Mesmo cercado de grandes estrelas como Anthony Hopkins, Jeremy Strong e Anne Hathaway, o garoto dá um show e não deve em nada em atuação. Sir Hopkins, como era de se esperar, também é um destaque e não seria surpresa se garantisse uma vaga na temporada de premiações como Melhor Ator Coadjuvante. Hathaway e Strong estão muito bem, mas é lamentável ver Jessica Chastain em apenas uma cena durante o filme inteiro, uma participação completamente subaproveitada.

Claro, não podemos deixar de falar sobre o trabalho incrível do jovem Jaylin Webb como Johnny, melhor amigo de Paul e responsável pela discussão mais importante e controversa de Armageddon Time. É sempre delicado quando um filme escolhe falar sobre racismo a partir da visão de um personagem branco. Green Book (2018), para mencionar um exemplo recente, acaba desandando para a história do branco salvador que, definitivamente, não deveria ser o foco. O filme de Gray, apesar da boa intenção, não consegue evitar o gosto amargo de relegar ao segundo plano um tema tão importante. Talvez pequenos ajustes no roteiro poderiam resolver a questão, afinal, por mais que o longa seja sobre Paul, Johnny tem um papel enorme da vida do garoto e o racismo que ele sofre poderia ter sido melhor abordado.

No fim das contas, Armageddon Time, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (10/11), se encerra numa nota bastante positiva. É um drama singelo por sua banalidade, mas ainda assim profundo e envolto numa complexidade necessária. Ele não deixa de ter seus defeitos: um final apressado, personagens que poderiam ser melhor aproveitados, temas espinhentos que deveriam ter mais atenção. Mas é um trabalho que, apesar da visão dura sobre o amadurecimento, consegue falar sobre essa fase de um jeito envolvente e ainda carinhoso. É fácil ver o afeto com que James Gray apresenta suas memórias ao público, seja através das escolhas musicais, seja por meio de objetos simples do dia a dia do protagonista. Tudo isso dialoga muito bem com o público e ajuda o filme a entrar, nem que seja um pouco, no coração de cada espectador.