Crítica | Belfast (2021)

Nota do filme:

Os primeiros minutos de Belfast, que estreia nos cinemas na quinta-feira (10), são simbólicos no desenvolvimento da proposta do filme. Neles, o menino Buddy (Jude Hill), de nove anos, brinca pelas ruas de seu amado subúrbio quando inicia-se um conflito entre católicos e protestantes que culmina em brigas, ataques e até carros explodindo na porta de sua casa. Esta guerra civil, também conhecida como The Troubles, durou até o final dos anos 90 e marcou um período de muita insegurança e medo na Irlanda do Norte, onde vizinhos eram obrigados a se opor uns aos outros sem motivo aparente. É através do paralelo entre a ingenuidade infantil e a falta de sentido em conflitos como este que o diretor e roteirista Kenneth Branagh escolhe contar essa história, levemente inspirada em sua infância, também vivida na capital Belfast.

Bem mais preocupado em aumentar as notas para conquistar a crush do colégio do que em entender a balbúrdia que fazem os adultos, Buddy vê seu pequeno universo invadido por grandes problemas. O pai (Jamie Dornan) é um homem amável, mas que passa semanas longe, trabalhando em Londres; sua mãe (Caitriona Balfe) fica encarregada de criar e educar os filhos, mas vive angustiada com a instabilidade da família. Quando as coisas apertam, Buddy se refugia na casa dos avós (Judi Dench e Ciarán Hinds), que lhe dão carinho e os conselhos que precisa. A dinâmica familiar é boa, mas conforme a guerra avança, fica cada vez mais difícil deixar do lado de fora os problemas que ela acaba gerando, e não tem estrutura familiar que não se abale com isso.

Fica evidente o tempo todo que Belfast é um projeto bastante pessoal para Branagh. É possível sentir o cuidado e preciosismo com que ele trata cada momento da história, desde o tratamento do roteiro até questões técnicas como fotografia e enquadramentos. Existe aqui muito talento e afeto, e mesmo que por vezes ele perca o foco sobre a abordagem que deseja, seu longa continua uma obra tocante e sensível sobre as dores e alegrias de uma infância vivida em meio à conflitos que a inocência da criança não consegue mesurar.

Cena de Belfast.

Menos de um mês depois do lançamento de Morte no Nilo, Kenneth volta a esbanjar seu talento como diretor, lançando mão de uma visão lúdica para abordar esse momento tão grave da história da Irlanda. Aos olhos de Buddy, cujo universo infantil é captado com sensibilidade e muita delicadeza, a guerra é uma mera coadjuvante. O que realmente importa é ver seus pais juntos, assistir filmes na matinê do fim de semana e poder brincar com os amigos pelas ruas que conhece desde que nasceu. Enquadramentos inusitados e criativos constroem o universo inocente do garoto e, aos poucos, o espectador vai sendo transportado para uma infância talvez muito distante da que viveu, mas com a qual estranhamente consegue se identificar.

A ambientação nos anos 60 é rica tanto em figurinos quanto em referências à cultura pop. O longa é meticuloso até em pequenos detalhes e a escolha pela fotografia em preto e branco é mais um dos acertos da reconstrução de época, fundamental para que o espectador tenha uma experiência ainda mais imersiva. Aqui, o preto e branco não é apenas um acessório, ele ajuda na representação das memórias do diretor, evidenciando os momentos de pureza e genuíno escapismo de Buddy, geralmente no teatro e no cinema. São passagens bastante tocantes e que conversam diretamente com a infância e as memórias do público.

Contudo, Belfast peca no momento em que procura assumir aquela que parecia ser sua proposta desde o início. Tirando a cena inicial e algumas poucas em que Buddy se envolve diretamente nos conflitos que invadem a cidade, é difícil ver o que se passa através de seus olhos porque ele está sempre muito distante de tudo. O longa perde o foco da proposta inicial e coloca o protagonista tão alheio ao que está acontecendo que ele acaba perdendo seu propósito. Belfast, que tem a intenção de mostrar a guerra através dos olhos de Buddy, acaba dando mais destaque que o necessário aos pais do menino, e o resultado é um filme cujo protagonista é aparece como coadjuvante na própria história.

Caitriona Balfe e Jamie Dornan em cena de Belfast.

Não que Caitriona Balfe ou Jamie Dornan não tenham condições de assumir a responsabilidade. Ele consegue se desvencilhar muito bem da imagem que 50 Tons de Cinza ajudou a criar entre o público, mas a presença de Caitriona é ainda mais marcante e a atriz rouba todas as cenas em que aparece. Apesar do foco excessivo que recai sobre os dois, o roteiro não desenvolve bem certas questões que acompanham os personagens, também deixando a desejar no envolvimento de Buddy nos conflitos que cercam sua família. Em contrapartida, Jude Hill tem talento e carisma de sobra e fica impossível para o espectador se encantar por suas aventuras.

Como homenagem, Belfast consegue ser a carta de amor que Branagh intencionava escrever sobre sua infância. O tom lúdico e de genuíno fascínio com que ele capta as experiências de Buddy na escola, na igreja ou em contato com a arte é preciso e muito emocionante, capaz de deixar qualquer espectador apaixonado. Já nos momentos em que precisa colocá-lo frente a frente com a realidade que o cerca, o diretor acaba fraquejando e Belfast perde muito do peso dramático que poderia ter. É um longa visualmente bonito, divertido e com ótimos momentos, mas está longe de merecer o título de melhor filme ou roteiro do ano.