Crítica | Vem e Vê (Idi i Smotri) [1985]

Uma epopéia perturbadora pelo vazio do que um dia foi a humanidade

O uso da palavra vazio é pontual, pois é uma sensação que sentimos ao assistir esse filme. Em um primeiro momento já adianto que essa obra não romantiza a segunda guerra mundial e fica longe de fazer qualquer apelo ao emocional humano.  Idi i Smotri é um retrato dos horrores que uma guerra proporciona. Um retrato que apenas você pode julgar o que sente.

Do título censurado, “Kill Hitler”, renomeado como Idi i Smotri, título traduzido erroneamente para o português “Vá e Veja”, Idi i Smotri, aterradoramente faz referência ao Apocalipse de João, onde vemos o anúncio e convite para testemunhar a destruição da humanidade pelos quatro cavaleiros.

“Ap 6:7 E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem e vê!

Ap 6:8 E olhei, e eis um cavalo amarelo; e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra.”

Título que se encaixa perfeitamente em uma epopéia de devastação e crueldade, saboreada em tom de histeria e loucura por seus orquestradores.

Como dito antes, não se trata de um romance, o filme escrito por Elem Klimov e Ales Adamovich, que vivenciou o combate quando jovem é feito para perturbar e questionar a existência de monstros dentro de nós mesmos. Detalhe pertinente, é que ambos citados viveram os horrores dessa guerra de formas diferentes e no filme tem um pouco da história de cada um. Assim como o documentário “Noite e Neblina (1955)” nenhuma outra película sobre a segunda guerra havia me chocado tanto, justamente pelo fato de lhe mostrar atrocidades sem em nenhum momento manifestar repulsa, ou opinião, apenas relatando fatos e deixando o espectador ter seus próprios sentimentos sobre o ocorrido.

E aqui entramos em algo vital ao falar de “Idi i Smotri”, que vai além de uma experiência cinematográfica convencional, é uma experiência sensorial como nenhuma outra já feita. E é exatamente o que você sente em relação ao que vê ou escuta que é a grande ideia da obra de Klimov. Destaque para uma cena onde uma explosão próxima ao protagonista faz seus ouvidos sangrarem pelo barulho estrondoso e durante um bom tempo, escutamos apenas o que o protagonista  estaria ouvindo, o que de forma simples nos coloca dentro da cena, e faz a imaginação correr muito longe. Algo que foi muito copiado em outras produções posteriores.

O filme conta a história de Flyora, um jovem, que como boa parte dos jovens em épocas de guerra, tem delírios de fazer parte da luta pela pátria, pela honra em campo de batalha. A película abre com Flyora e outro menino, cavando uma trincheira antiga em busca de armas e uniformes, ignorando totalmente os avisos de um velho do vilarejo, que atentava para os perigos contidos naquela atitude. Arma que se encontrada seria uma passagem direta para guerra, por meio dos soldados da milícia campesina, acampados próximos ao vilarejo de Flyora, que pela escassez de poder de fogo e munição, se armavam para guerra como podiam, em busca de se juntar ao exército vermelho. Detalhe marcante, era que tanto soldados do exército, como das milícias do campo, eram vistos como inimigos em potencial pelos nazistas. Após um tempo, um rifle é encontrado, porém pelo azar dos meninos, um bombardeiro alemão que passa pelo local espionando, avista o pequeno Flyora com um rifle em mãos, e assim inicia a jornada de loucuras e desespero desse jovem, que nos é contada em muitos detalhes e nenhum deles é gratuito.

Em uma próxima cena, após vermos o desespero de uma mãe e um humor pontual da história por parte de soldados que chegam para buscar Flyora, percebemos que o tom do filme nos traz uma estranheza muito peculiar, o que com o passar do tempo e também com pesquisas sobre o filme, conseguimos entender que isso se dá pelo fato de seus escritores terem vivido aquela loucura, e o que nos passa em tela, é exatamente a histeria e loucura que eram vividas naquela época.

Depois de chegar ao acampamento da resistência, em meio há uma floresta, Flyora se adéqua a rotina do acampamento e por fim conhece Glasha, uma jovem amante de um dos líderes da milícia, por quem Flyora parece estar encantado, e após ambos serem deixados para trás pelos soldados da guerrilha que partem para a batalha, os dois jovens são obrigados a entrar juntos em uma jornada de sofrimento, angustia e loucura mediante aos horrores de uma guerra.

Artisticamente o filme é belíssimo, Klimov junto do diretor de fotografia, Aleksei Rodionov, controlam completamente imagem e som nessa obra. Os planos em movimento, as sequências em ação, as expressões dos personagens, o menor detalhe possível, tudo nos é passado para aumentar a proximidade com os acontecimentos. Destaque para explosões reais, tiros reais que dão um tom ainda mais realístico para o filme e por tudo que sabemos do filme, dão uma agravada na performance dilacerante do jovem Flyora (Aleksey Kravchenko), que simplesmente tem uma das atuações mais perturbadoras da história do cinema. Sua expressão de horror, seu envelhecimento em cena e até sua dor, que é passada de forma compreensível até mesmo para o espectador mais desatento.

Em uma entrevista, Klimov diz; “Meu filme é uma versão leve do que nós vivemos. Fui incapaz de filmar o que foi”. Essa afirmação de Klimov é incompreensível mediante ao inferno que acompanhamos no filme, chega a ser inimaginável um horror maior do que aquilo que presenciamos.

A primeira vez que vi “Vem e Vê” fiquei chocado com o tom ingênuo que o filme nos remete a guerra em seu início, e com a escalada lírica e psicótica rumo ao horror absoluto para onde o filme é conduzido. Horror absoluto é um termo que se pode usar sempre que formos falar de Idi i Smotri. A forma com que o “ato” de dizimar uma aldeia inteira queimada não significa nada, a não ser alegria e histeria por parte de seus executores. Em como simplesmente não há limites para barbárie para com outros seres humanos, diante um discurso de que o outro não merece viver. Não que essas coisas não tivessem sido reproduzidas em outras grandes obras do cinema sobre guerras, mas a forma com que Elem Klimov nos passa isso, é um convite para assistirmos esse espetáculo sádico de terror, como testemunhas da total falta de esperança e também humanidade no olhar de seus personagens e simplesmente nos deixa sozinhos para tomarmos nossa interpretação da história que nos contou.

Por mais que seja diabólico o ato de dizimar uma aldeia, dentre mais de 600 que foram dizimadas inteiramente na Bielorússia, é a forma como fizeram isso que choca. A completa e total falta de humanidade, de amor, de limites nas atitudes dos executores. A alegria com que fazem as atrocidades. O discurso de um dos soldados questionado sobre o fato de ter dado a ordem de manter mulheres e crianças dentro do armazém que seria queimado, refletindo os ideais pregados por seu regime idealista, sobre a extinção de povos que consideram inferiores, onde remete;  “Disse isso porque tudo começa com as crianças. Elas não têm o direito de existir. Nem todos os povos têm direito ao futuro. As raças inferiores procriam o contágio do comunismo. Quando vocês não mais existirem, minha missão estará cumprida. Se não hoje, amanhã”.

Nesse filme Klimov não tenta argumentar um motivo para as atrocidades cometidas com seu povo e com outros povos, pois falharia, como qualquer pessoa iria falhar ao tentar explicar com racionalidade o genocídio cometido na segunda guerra e como ele foi feito. Klimov apenas nos apresenta o horror de forma onírica, como em um pesadelo absurdo, repleto de loucura, maldade e insensatez, o que o jovem Flyora apenas registra num inicio de olhar inocente, progredindo para algo completamente vazio.

Considero esse filme um dos melhores filmes de guerra já feitos, se não o melhor, tanto por seu roteiro, quanto por todo o conjunto técnico e artístico da obra. Assim como o documentário “Noite e Neblina (1955)”, que nos trás cenas reais da barbárie nazista, Idi I Smotri, nos trás o horror da guerra, como um ato de loucura e mesmo em um tom lírico, é tão real que machuca e choca seus espectadores.

P.S: Como se trata de uma crítica, preferi não explicar cada cena do filme, ou repassar toda a história que nos é contada, para evitar spoilers, mas penso ainda em criar um texto tomando nota sobre cada simbolismo contido nesse filme, nos mínimos detalhes, cada cena criada, fatos que tornam esse filme genial em sua crítica para com toda a humanidade.

Deixo dois trailers desse filme, um deles recente e não oficial, mas muito bem feito.

 

Trailer 2 (não oficial)