A destruição do arquétipo em Mary Magdalene

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Filmes sobre a historia do cristianismo e seus personagens são recorrentes por sempre terem clamor religioso por parte do público ao ver suas crenças sendo ilustradas na grande tela, e também chama a atenção dos não praticantes da doutrina por conta da abordagem utilizada para representar os protagonistas durante esse período. E, sem dúvidas, a personagem mais emblemática que desperta uma curiosidade que perdura e conquista a todos até hoje é a de Maria Madalena, que obteve um filme tentando romper com os estereótipos recorrentes na forma como é apresentada.

Com isso, Garth Davis (Lion) parte do pressuposto de entregar uma historia de origem da personagem de forma mais realista, corrigindo todos os equívocos do imaginário popular, mostrando Maria como uma das seguidoras de Cristo, sua devoção para com ele e seu amor pela doutrina pregada entre os apóstolos, e não como uma prostituta, um de seus rótulos mais recorrentes, e talvez o que venha a cabeça de todos quando se pensa nela, sendo que ainda o diretor explica o porque dessa banalidade habitar o inconsciente das pessoas. Esse fato decorre da interpretação errônea do Papa Gregório I, na qual ele associou mulheres pecadoras anônimas em algumas passagens da Bíblia a ela, numa tentativa de convencer os fiéis de que o arrependimento sincero bastaria para um perdão de Deus, tornando Madalena uma mártir, porém de forma negativa.

Apesar disso, Davis consegue cumprir o que propõe, aliado a duas performances poderosíssimas: Joaquin Phoenix como Jesus Cristo e Rooney Mara como Maria Madalena.  Phoenix entrega uma atuação em que seu personagem deixa transparecer sua fé para todos a sua volta, sendo muito eloquente com todas suas pregações para o povo durante o tempo de tela em que é mostrado, porém ele se torna apenas um ótimo coadjuvante pois quem rouba a cena é a excepcional Rooney Mara. A atriz transmite muitos sentimentos apenas com um olhar, dosando seus momentos de raiva, admiração, felicidade, deslumbramento e tristeza com diálogos certeiros e entonações precisas. Menção honrosa para as duas roteiristas do filme, Helen EdmundsonPhilippa Goslett, que assinam o filme simultaneamente ao crescimento do movimento Time’s Up, se tornando ainda mais relevante.

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Não obstante suas 17 citações nominais na Bíblia, Maria foi reconhecida como a “apóstola dos apóstolos” pontualmente por ter sido a primeira a testemunhar a ressurreição de Cristo, cabendo a ela contar aos outros apóstolos sobre esse fato. Porém após a adição da Igreja Católica como oficial do Império Romano, no ano 380, foi deixada de lado por conta do patriarcalismo imperante da época, resultando aquela associação excêntrica do Papa Gregório I, já citada anteriormente.

Contudo, conforme o tempo avança, Madalena vai retomando seu lugar por direito. Com o apoio da Igreja Católica dedicando uma festa ao seu nome no dia 22 de junho, reforçando seu status como santa através disso, servindo de base para uma evolução interna da Igreja em relação a posição das mulheres na hierarquia católica, mesmo caminhando a passos de bebê, na qual ela poderia muito bem ter sido a primeira pessoa a ter um reinado papal, pois se o divisor de aguas foi a influência exercida por cada apóstolo, Maria foi preterida por Pedro justamente por conta de seu sexo e do machismo do Império Romano, pois ambos foram peças fundamentais e influíram igualmente nos primórdios do catolicismo.

Embora seu passado permaneça um mistério, as lendas que habitam o imaginário popular ajudam a aumentar a sua mitologia, mesmo que de forma equivocada, levando a diversas pessoas se aprofundarem nesse campo de estudo, tal como faz Garth Davis, apesar de haverem versões em que ela tenha sido uma mulher que decidiu fugir com um soldado romano, sendo abandonada por ele depois de um tempo, se tornando uma prostituta, encontrando-se com Cristo e tornando-se sua seguidora. Há outra também que diz que ela tinha sido uma aristocrata, herdeira de um castelo na região de Magdala, vivendo uma vida de luxúria até conhecer Jesus e passar a segui-lo. E os mais entusiastas acreditam que Madalena era a noiva no casamento em que Cristo realiza o primeiro milagre: o de transformar a água em vinho, na qual o noivo era João Evangelista, que se encantou com o ato e abandonou o casamento para se tornar discípulo de Jesus. Maria acabaria vivendo como prostituta após isso e se encontraria com Jesus apenas depois, conforme está nos evangelhos.

Imagem: Aparição de Cristo para Maria Madalena. IVANOV, Alexander.

Todavia, apesar da abordagem de Davis ser diferente, Madalena já apareceu em mais de 30 filmes, sempre retratada como uma linda mulher, de forma bem sedutora. Longe das feições de Rooney Mara serem o assunto, a questão é que nesse filme o diretor não priorizou esse sex appeal da personagem, ele focou em retratar ela como uma jovem que se une a um movimento social radical, enfrentando a realidade do destino de Jesus e o seu lugar dentro disso, não precisando apelar para o relacionamento dela com Cristo, tanto de forma sexual ou afetuosa, se importando em apenas retratá-la como uma garota descobrindo novas ideias sobre sua realidade.

Logo, o filme joga uma luz em uma característica usual da personagem que é pouco debatida, e se importa em reverter isso, trazendo uma nova perspectiva sobre ela em uma época que a discussão sobre esses temas é mais acalorada e conscientizadora.  Afinal de contas, Maria Madalena foi prostituta, santa, esposa de Jesus, apóstola, feminista, e mais tantos rótulos, e apenas o primeiro mora no imaginário popular, de forma pejorativa, manchando um pouco a grande riqueza que compõe sua lenda.