Crítica | The Nightingale (2019)

Nota do Filme:

“Eu pertenço a mim e a mais ninguém!”

Clare

The Nightingale se passa na Tasmânia, no ano de 1825, e conta a violenta história de Clare (Aisling Franciosi), mulher irlandesa mantida no local em decorrência de uma condenação de sete anos na Inglaterra. Após presenciar a morte de seu marido e filha pelas mãos de soldados britânicos liderados pelo Tenente Hawkins (Sam Clafilin), passa a persegui-los pela floresta em busca de vingança. Para guiá-la por meio de terrenos que desconhece, contrata o aborígene Billy (Baykali Ganambarr).

Em 2014, Jennifer Kent se lançou no cenário mainstream de filmes com o aclamado O Babadook. Apesar de uma distribuição inicialmente tímida, o crescimento do mercado online permitiu que se tornasse um hit não apenas crítico como também comercial. Com o sucesso da estreia, houve forte expectativa sobre o próximo passo e, apesar de seu segundo trabalho ser algo  diferente do que muitos provavelmente esperam, está (muito) longe de ser um erro.

Desnecessário dizer que o cinema de um país sempre irá dialogar mais com o povo que lá vive. Paulo Emílio Sales Gomes, historiador e crítico de cinema, há muitos anos já havia proferido polêmica frase para explicitar esse ponto de vista no que diz respeito às produções cinematográficas brasileiras face às estrangeiras. Com isso em mente, assistir a algo como The Nightingale se torna uma experiência completamente diferente do que poderia ser.

Isto porque Kent opta por focar seu segundo longa em um sangrento período de sua pátria. O período de colonização da Austrália teve início em 1788, sendo a região transformada em uma colônia penal pela Inglaterra que, não mais podendo enviar presos aos Estados Unidos – independente desde 1776 – se viu com uma superpopulação carcerária. As tribos aborígines, nativas da região, como é comum na História, sofreram no processo. Nesse sentido, por mais que a narrativa certamente possa ser apreciada por qualquer espectador, os nacionais daquele país certamente têm uma “vantagem” no que diz respeito à proximidade com os fatos em si.

(In)felizmente, o contexto de violência é geral o bastante a ponto de permitir, com o mínimo de conhecimento, que a audiência se envolva com a história contada. Clare é uma mulher que, a despeito de supostos erros no seu passado, se vê impossibilitada de se retirar da colônia por mais que, ao menos em tese, tenha direito para tal, fruto de um sentimento de posse desumano por parte do Hawkins, responsável pela manutenção dos presos. Quando tudo que ama lhe é tirado abruptamente, vê a vingança como o único caminho possível.

Nesse sentido, The Nightingale definitivamente não é um filme fácil de ser assistido, não à toa, segundo a atriz Aisling Franciosi, a produção do longa foi acompanhada por uma psicóloga, de modo a prover o suporte emocional necessário ao filmar determinadas cenas, não apenas ao elenco mas à toda a equipe de filmagem. Explicita-se, então, que a película contém cenas fortes de violência, inclusive sexual, o que talvez seja demais para determinados espectadores.

Acerca, especificamente, da retratação da violência sexual, destaca-se que há um cuidado por parte de Kent em não glamourizar a situação, o que a difere, e muito, daquelas mostradas rotineiramente em Game of Thrones, por exemplo. Dessa maneira, não há qualquer nudez ou sexualização da vítima, retratando a situação não como um ato sexual, mas sim como um ato de poder imposto, o que em nada diminui a brutalidade da cena. Há muito a ser discutido sobre como esse tipo de cena deve ser retratada – ou até mesmo se deveria ser retratada –, entretanto, uma perspectiva feminina por trás das câmeras certamente diminui o espaço para uma possível objetificação da vítima.

Retornando ao roteiro em si, por mais simplista que a narrativa aparente ser, no decorrer de seus 136 minutos de duração há nuances que tornam a história um tanto quanto profunda, tornando-se mais um (ótimo) exemplo de como extrair complexidade da simplicidade. Afinal, encarar nosso algoz pode não ser uma tarefa tão fácil quanto a adrenalina temporária faz parecer. Ao mesmo tempo, a convivência de Clare e Billy, tumultuosa no começo, nos mostra o quanto um pouco de empatia pelo outro pode fazer com que fortes amizades surjam.

Desse modo, a diretora opta por dar foca majoritário à dupla de personagens utilizando-se de um cenário micro para abordar, ainda que de maneira leve, o cenário macro – a guerra. Dessa forma, mostra-se diferente de um típico “filme de guerra”, motivo pelo qual não há grandes batalhas mas o espectador consegue, ainda assim, sentir o clima que pairava pelo país poucos anos após o início de seu processo colonizatório.

Adentrando na atuação presente no longa, foquemos no trio principal pelo seu grande destaque, mas é importante deixar claro que todo o elenco de suporte apresenta um ótimo trabalho. Pois bem, dos três personagens com maior tempo de tela o mais conhecido é interpretado Sam Claflin (Como Eu Era Antes de Você, Jogos Vorazes: Em Chamas), que em The Nightingale, dá vida a Hawkins, um papel que requer muito de si, talvez justamente pela violência contida que deve, ao mesmo tempo, demonstrar e tentar esconder. Já Baykali Ganambarr tem, aqui, o seu primeiro papel profissional. Nesse sentido, é impossível não se impressionar com o seu trabalho, fazendo com que o espectador quase sinta a alma do seu personagem, sobretudo em momentos nos quais dança, como em alguns rituais tribais.

O destaque nesse quesito, porém,  fica com Aisling Franciosi. Isto porque com o foco da narrativa em sua personagem, muitos segmentos da história dependem exclusivamente de sua performance. Kent se utiliza de muitas tomadas com o foco apenas em seu rosto, suas expressões, e Aisling em momento algum decepciona, mostrando-se totalmente imersa em seu papel. À indústria resta apenas lamentar que essa performance, certamente, será esnobada na temporada de premiações, tal qual tantas outras no passado recente (Toni Colette por Hereditário e Carey Mulligan por Vida Selvagem, são apenas alguns dos muitos exemplos). Pode-se dizer, então, que o trabalho de Franciosi em The Nightingale está em um patamar tão alto que sequer receberá a atenção devida.

Há, todavia, pontos negativos que, por mais que jamais se sobreponham às suas qualidades, são dignas de menção. O mais nítido é o tempo de duração. 136 minutos acaba sendo um pouco acima do necessário ao longa, que se beneficiaria de alguns minutos a menos. Ainda, por mais que jamais seja, efetivamente, gratuita, há momentos em que a violência não chega a mover a narrativa de maneira considerável sendo, talvez, dispensável.

De qualquer forma, The Nightingale é excepcional em retratar um período que a História tende a ignorar. A extensa pesquisa feita pela diretora compensa não apenas em uma riquíssima obra como, ainda, a marca para o mercada como uma diretora extremamente competente e meticulosa. As performances do trio principal, sobretudo Aisling Franciosi, ajudam a elevar o filme a um patamar ainda mais alto, tornando-o um dos lançamentos mais interessantes de 2019.