Crítica | O Dilema das Redes (The Social Dilemma) [2020]

Nota do Filme:

Escolha Facebook, Twitter, Snapchat, Instagram (…) escolha atualizar seu perfil; diga ao mundo o que você comeu no café da manhã e torça para que alguém, em algum lugar, se importe.” Em T2: Trainspotting (2017), para se referir aos impactos negativos causados pelas redes sociais na vida em comunidade, o personagem Mark Renton, vivido por Ewan McGregor, inclui esse trecho na versão atualizada de seu monólogo “Choose life”, imortalizado em 1996. Considerando o que testemunhamos nos poucos mais de noventa minutos de O Dilema das Redes, documentário que se debruça sobre tais impactos, é possível imaginar que Renton teria achado o filme extremamente interessante.

Com o advento das plataformas mencionadas acima, o mundo mudou e com ele também mudou a maneira como nos relacionamos com a tecnologia. Mas uma mudança provocada por transformações tecnológicas não é exatamente algo sem precedentes na história da humanidade; o que, nesse caso, talvez seja seu aspecto mais profundo – e, aí sim, sem precedentes – é a rapidez com que tais mudanças estão se dando (basta lembrar que enquanto o roteiro de T2 era escrito, o TikTok estava apenas engatinhando, e não é absurdo pensar que daqui mais quatro anos outro fenômeno já terá surgido, talvez ainda mais avassalador).

Assim, não é de se espantar que até mesmo áreas como Medicina e Psicologia também estejam sendo afetadas. Muito se tem discutido sobre os efeitos, físicos e mentais, do uso excessivo das redes, sendo necessária, por exemplo, a criação de termos – como Nomofobia e Síndrome do Toque Fantasma – para a identificação de novos transtornos. Mais recentemente, foi a Política que passou para o centro das atenções, com diversos sites e aplicativos sendo empregados de modo massivo para influenciar em resultados eleitorais e, de quebra, polarizar e radicalizar ainda mais os diferentes atores envolvidos no processo.

É nesses pontos que O Dilema das Redes tem mais interesse, utilizando depoimentos de profissionais e ex-funcionários das grandes empresas do ramo como principal meio para expor a gravidade dos problemas. Nesse sentido, a estrutura das passagens do longa é formal e bem definida, com a apresentação inicial de um problema, sua exploração à exaustão e a busca (nem sempre obtida) por soluções.

Intercalada com os depoimentos, há uma história ficcional que exerce a função de ilustrar os tópicos que estão sendo discutidos. Se na maioria dos casos esse artifício seria dispensável e poderia ser visto apenas como uma muleta para esticar a duração do projeto, aqui pode ser justificado, não apenas pelo seu didatismo, mas, sobretudo, por permitir que identifiquemos e reconheçamos diversas situações cotidianas. Além disso, não deixa de ser curiosa a escalação de Vincent Kartheiser no papel do algoritmo responsável pelos anúncios, já que um de seus papeis mais famosos foi justamente em Mad Men.

Outros pontos de acerto estão na clareza em demonstrar como o mundo das redes, nas palavras de um entrevistado, “deixou de ser uma ferramenta para ser um vício e um meio de manipulação”. As comparações com o vício em drogas (como o termo “usuário”) são nítidas e é particularmente perturbador constatar o esforço conjunto de diversos campos – até mesmo do ilusionismo – para criar em nós a falsa sensação de liberdade.

Embora não tenha um protagonista explícito e os depoimentos sejam bem distribuídos, é inegável que o trajeto da narrativa se concentra na figura de Tristan Harris, ex-funcionário do Google e agora presidente do Center for Humane Technology. É principalmente através de seus depoimentos e de sua batalha por um ambiente digital mais ético que acompanhamos os desafios e os entraves da busca por uma vida em redes mais saudável.

Mas e quanto às empresas? Como as companhias comandadas por Mark Zuckerberg, Jack Dorsey e similares se posicionam diante dessa realidade? O que o documentário aponta, e que foi reforçado há apenas algumas semanas pela ex-funcionária do Facebook, Frances Haugen, é algo que pode até ser incômodo, mas que não chega a surpreender: as gigantes das comunicações sempre priorizarão os lucros, não importa se isso resultar na deterioração da sua autoestima ou no esfacelamento das democracias. Afinal, por mais cínico que possa soar, estamos falando de megacorporações, e corporações, por definição, visam o lucro, mesmo que isso signifique sacrificar ambientes seguros e saudáveis.

Portanto, devemos esperar a solução em outros lugares, uma vez que ela não partirá das companhias. Onde, então? Nesse aspecto, todos os participantes do filme parecem convergir: sem regulação e atribuição de responsabilidades, a situação só tende a piorar, até um ponto em que talvez não nos reconheçamos mais como civilização.

Pode parecer uma solução simplista e uma consequência alarmante, mas é aí que reside o grande mérito de O Dilema das Redes; ele nos apresenta um cenário problemático demais para acharmos que sua superação será alcançada magicamente, e é convincente o bastante para visualizarmos um futuro catastrófico. Mesmo porque, de certa forma, já o estamos vivendo.