Crítica | Marighella (2019)

Nota do filme:

*contêm spoilers!

Carlos Marighella ecoou que “é preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer!” e sua fala, uma dentre milhões eternizadas na história brasileira, ressoou no coração do ator e diretor Wagner Moura, que estreia na função com um longa-metragem em homenagem ao líder político que deu a vida por um ideal: um Brasil justo, igualitário, colorido por suas raízes culturais e liberto das atrocidades da Ditadura Militar e do capitalismo. Abençoado por um elenco de alto calibre – Seu Jorge (Marighella), Bruno Gagliasso (Delegado L´úcio), Adriana Esteves (Carla), Herson Capri (Jorge Salles), só para citar alguns nomes -, Marighella é uma obra que reflete em grande parte o estagnado padrão das cinebiografias políticas já produzidas, que assumem uma romantização em detrimento da complexidade das suas figuras. Ainda assim, sob a batuta tradicionalmente precisa e sensível de Moura, que não assume a tenacidade defendida pelo guerrilheiro da luta armada, o título consegue incitar vestígios de reflexão e da chama revolucionária que ainda reside dentro de cada brasileiro consciente mesmo diante de tanta dor provinda dos últimos tempos. 

Separado em dois tempos, as primeiras centelhas do golpe militar em 1964 e as organizações mobilizadoras por parte dos revolucionários em 1968, o longa acompanha a figura de Carlos, que clama aos seus companheiros uma atitude opositora ao sistema militar diante de tanta amargura social, no auge da ditadura, enquanto tenta sobreviver para que possa ser, de novo, um pai para o seu filho. A forma com a qual Wagner constrói a dualidade entre a esfera militante e familiar é pontuada por  muita humanidade e cuidado, evidenciando o afeto dele com o projeto e o legado de Marighella. Mesmo inserido em um Brasil cinzento e sombrio, o qual a fotografia de Adrian Teijido não nos deixa esquecer, a presença de Carlos é luminosa diante da ótica do diretor, que se apropria de escolhas estilísticas tradicionais que, aqui bem-sucedidas, elevam o personagem, legitimando-o naquele espaço-tempo congelado na nossa história como um corpo presente e vivo, maior do que a tela. 

A direção enquadra Seu Jorge, impositivo, carismático e entregue em sua atuação, em uma decupagem de proximidade que nos coloca diante da dor e perspectiva do outro: o que se vê é a miríade de sentimentos de um homem que abdicou da sua individualidade e que respinga em cada um de nós como um clamor silencioso. Wagner Moura ainda injeta a emoção esperada – e necessária – com narração em off de cartas que Carlos ditou para seu filho após tê-lo abandonado, possibilitando a humanização de um homem visto como a personificação de um ideal. Uma das sequências mais sublimes do filme, em uma alusão a Moonlight (vencedor do Oscar de 2016), mostra Marighella e o filho na praia momentos antes da sua prisão em 64 ao som de uma das cartas na qual ele diz que este momento foi o “último em que seu pai esteve livre”.

É de uma sensibilidade e respeito que é impossível de ignorar e de não se comover, levando qualquer um a pensar como seria pagar o alto preço de lutar por um país que sempre foi quintal de políticas desiguais e opressoras. Proeminente nessa cinematografia, na qual os traços e a pele negra de Seu Jorge reluzem, direcionando sempre o nosso olhar para ele como um ser que merece ser visto e ouvido, Carlos Marighella nos permite ver suas dores mais humanas ao esbravejar seus discursos, nos encontros com seus amores pessoais e na solidão da sua jornada em cada quarto que se deixa esconder. Wagner oferece esse mesmo cuidado para com os companheiros de Marighella, por vezes evocando o sentimento de exílio que vive-se por abrir mão da ínfima liberdade que se tinha ao abraçar a penumbra dessa vivência.

O problema é que ocorre uma demasiada precisão dessa unidade estilística, e o resultado é um filme que não distingue os discursos completamente antagônicos, inserindo os dois lados da história em um mesmo patamar na narrativa. Wagner Moura faz uso de algumas dessas mesmas ferramentas na sua representação dos militares, o que enfraquece um pouco a sua intenção de dar ênfase às figuras militantes, além de se tornar cansativo. Se o uso da câmera na mão, por exemplo, é para aproximar do sujeito e estabelecer o clima de desordem e inquietude dentro de um aspecto documental, muito mais inerente à luta dos guerrilheiros, por quê utilizá-la também para retratar a oposição, que não vivenciava a mesma angústia? Embora estejamos falando de um momento que assolou um país inteiro, Marighella é, por essência, um filme de vivências e a percepção da realidade sob a ótica da política é distinta entre os grupos — assim como, subsequentemente, suas motivações e reflexões.  

De sua autoria, em parceria com Felipe Braga, o roteiro contribui para essa percepção, visto que carece de uma almejada profundidade em torno do cenário político e sofre com esvaziamento de detalhes ideológicos essenciais na construção contextual dos personagens, suas motivações e fragilidades. Baseado na obra de Mário Magalhães, “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, o texto oferece uma narrativa de arquétipos, alguns até caricaturais (vide o delegado insolente, o típico representante americano, o comunista que é comunista até demais), de situações clichês e de verborragias idealistas que não sustentam a efígie tão complexa quanto o de uma ditadura, principalmente a brasileira, e de um líder como Carlos – um professor, poeta, escritor e guerrilheiro negro da luta armada, cuja irreverente subversão e convicção mobilizou grupos e foi vital na história do nosso Brasil.

Esse lapso reverbera em uma expectativa frustrada de que ele vai além do didatismo em direção às complexas especificidades dos conflitos, das ideologias e das insígnias deste tempo, relações e figuras retratadas. Cria-se, então, uma ideia cartunista e esvaziada de que o dilema principal era entre Marighella e Lúcio, e abre um perigoso caminho para que a crítica do filme seja invertida aos olhos de muitos, colocando Marighella como o “vilão” em um retrato maniqueísta que não deveria deixar dúvidas de qual lado é a escória. Marighella parece ser um filme feito para agradar a militância progressista de hoje com o seu ativismo performático com a ingênua esperança de que somente a ideologia enlatada em sua dramatização romântica, sem uma marcada consciência de classe e social diante do sistema vigente, vai conseguir alcançar quem possui ideias divergentes e fazê-los enxergar o passado e realidade lúgubres do Brasil. 

A força funcional do longa-metragem — e da direção — se respalda então no viés dramático, como um típico filme de ação aquém da biografia de Carlos, nesse âmbito familiar e pessoal até bem representado não apenas pelas próprias questões do Marighella como também nos impactos diretos da opressão nas relações: uma mãe angustiada pelo destino da filha, de um filho que é acossado por inimigos do pai, por um marido que se arrisca para botar comida no prato dos seus três filhos. É uma lógica que funciona o suficiente para trazer o espectador para o filme por meio da comoção.

Como diretor, Wagner Moura é muito coeso no seu cuidado em resgatar a trajetória dessas pessoas sem que houvesse excessiva exploração leviana dos seus corpos sofridos, não reduzindo-os somente a esse ato. O equívoco do filme foi exatamente em se preocupar demais com a polarização, não se desafiando politicamente, de modo a evitar um equilíbrio mais robusto entre os deslocamentos e convicções dos seus personagens. O filme nos faz conectar com o indivíduo na sua humanidade universal, nos seus sacrifícios por esse bem coletivo, mas reduz a singularidade da sua presença e seu pano de fundo sociopolítico, e, subsequentemente, do seu efeito enquanto filme politizado.

Esperava-se que Marighella tivesse uma veia mais revolucionária em termos cinematográficos e narrativos. Afinal, era para esse lugar que as primeiras sequências arrebatadoras – entre elas um plano-sequência ao som de Monólogo ao Pé de Ouvido (Nação Zumbi) – apontavam. Mesmo contido nessa comodidade e no abandono de riscos instigantes para a obra, sobretudo na atual conjuntura brasileira, a estreia de Wagner Moura na direção de um longa tão difícil ainda é interessante, necessária e tem seus méritos. Ademais, Marighella ficará cristalizado na história do nosso país como um símbolo de resistência diante das intempéries do seu lançamento em tempos de desmantelamento do povo. Para aqueles que ainda acreditam em um Brasil mais justo e igualitário, o filme nos fez o favor de lembrar de que não estamos sozinhos nessa luta e que devemos continuar por nós, por aqueles que vieram antes de nós e para os que ainda estão por vir. Quando olharmos para trás, é esse valor histórico que vai prevalecer e fazer jus às palavras do guerrilheiro: “tem gente resistindo e essa luta é justa!”