Crítica | Monster (Kaibutsu) [2023]

Nota do Filme:

“Quem é o monstro?”

Múltiplos

Monster segue Saori (Sakura Ando), uma mãe que, após o falecimento do seu marido, cria seu filho, Minato (Soya Kurokawa), totalmente sozinha. Ao notar que ele começa a apresentar um comportamento atípico, logo descobre que a situação pode ter sido causada por um de seus professores, Hori (Eita Nagayama). Ao buscar responsabilização pela escola, porém, encontra grande resistência da diretora Fushimi (Yûko Tanaka), ao mesmo tempo em que descobre que a verdade pode ser um pouco mais complicada do que havia pensado inicialmente.

Kore-eda Hirokazu é um dos nomes mais fortes da direção japonesa na atualidade, especialmente ao considerarmos exclusivamente o cinema live action. Conhecido pela temática de parentalidade e infância, também presentes em seus outros trabalhos, concorreu ao Oscar de Melhor Filme Internacional por Assunto de Família, um dos grandes longa-metragens de 2018. Em sua mais nova produção, não apenas mantém aquilo pelo qual é mais conhecido como, ainda, cria novas nuances.

“Quem é o monstro?” é uma questão que permeia toda a película. Por vezes em tom jocoso, por vezes em tom sério, nos faz questionar, afinal, qual seria o conceito de monstruosidade. É possível rastrear os males da vida de um indivíduo unicamente a uma pessoa/evento? Em momento algum a obra tenta responder a essas questões, mas, tão somente, apresenta-as à audiência, que fará o próprio questionamento internamente.

Se em Em Silêncio há uma verdadeira conspiração dentro do sistema de ensino para ocultar o abuso infantil, e em A Caça há uma verdadeira histeria coletiva quanto a um suposto abuso infantil, Monster conta com diversas camadas que o espectador não conseguirá decifrar facilmente. Assim, por mais que pareça algo natural, o longa consegue, por meio de sua franqueza, transmitir uma das maiores universalidades que há: nada é tão simples quanto parece à primeira vista. 

Nesse sentido, é quase como se fosse o sucessor espiritual de Rashomon, do grande Akira Kurosawa. No clássico japonês da década de 50, o julgamento do assassinato de um samurai traz à tona três diferentes versões sobre o acontecimento, ressaltando não apenas a falibilidade natural da memória humana como, também, a influência que o ponto de vista tem na simples formação da lembrança em si e, por extensão, nas histórias recontadas.

Por essa razão, esse texto não entrará em muitos detalhes quanto às relevações da obra. Na realidade, quanto menos o espectador souber, melhor. A primeira vez terá um maior impatcto dessa maneira, reforçando a temática trabalhada. Há, contudo, substância o bastante para justificar retornos à película, de modo a buscar por novos detalhes ou interpretações diferentes.

Em Monster, não há um assassinato, mas, sim, mudanças na vida de uma criança ainda jovem demais para ter independência, porém, velha o bastante para ter seus próprios segredos. A realidade é que, tal qual filhos pouco sabem da vida de seus pais, há um limite sobre o que os pais podem – ou conseguem – saber da vida de seus próprios filhos, ainda que sejam bem jovens. Dessa forma, o filme alterna entre as perspectivas de Saori, Hori e, ao final, Fushimi, cada personagem tentando decifrar, afinal, o que ocorre com Minato.

É justamente nessas transições que Kore-eda Hirokazu demonstra o seu brilhantismouma vez que o longa, em momento algum, se torna repetitivo ou enfadonho. Ao contrário, cada mudança apenas aumenta a compreensão da audiência para os eventos ali narrados. Trata-se de um feito considerável, especialmente quando se sabe que o diretor não teve qualquer influência no roteiro, o que lhe é atípico.

Seria relapso, então, não mencionar o excepcional trabalho do roteirista Yûji Sakamoto é sublime, tendo sido premiado como Melhor Roteiro no Festival de Cannes. Não é estranho notar o quanto a sutileza do script complementa o trabalho de direção, uma vez tais mudanças, em que pese pequenas, são o bastante para alterar completamente a perspectiva do espectador. 

Ao mesmo tempo, Sakamoto consegue universalizar a temática de maneira um tanto quanto interessante. Trata-se de um filme claramente japonês e, como tal, conta com situações bastante associadadas ao país. Quando Saori confronta a escola pela primeira vez, é recepcionada por uma burocracia estranha e, nitidamente, pouco útil, algo com que, decerto, diversas pessoas podem se relacionar.

Contudo, há costumes nitidamente japoneses no modo como esse embate é retratado, como, por exemplo, a excessiva polidez dos funcionários da escola. Dessa forma, em que pese ser algo universal, há também clara regionalidade no conflito, de modo que, provavelmente, japoneses e residentes daquele país terão uma experiência ainda mais intensa.

Isso, porém, não seria possível sem o grande trabalho de atuação, em especial por Soya Kurokawa, que rouba a cena em seu primeiro longa-metragem. O modo como consegue transmitir, ao mesmo tempo, distância e vulnerabilidade, faz com que seja difícil imaginar o filme sem ele como figura central.Sendo assim, Monster é mais uma grande adição ao catálogo do Japão de 2023. Em um ano extremamente concorrido para o país, com obras como Godzilla Minus One, Suzume e O Menino e a Garça, Kore-eda mostra que não é um nome a ser subestimado. Com um roteiro simples, mas, extremamente competente, consegue aprofundar importantes e relevantes questionamentos de modo a impactar a sua audiência.