Crítica | Suzume [2023]

Nota do Filme:

“Ó Deuses Divinos que habitam embaixo desta terra. Vós nos protegeis por gerações, vossas montanhas e rios que chamamos de nossos…eu os devolvo pra vocês!”

Souta/Suzume

Suzume segue a história da personagem-título (Nanoka Hara na dublagem original e Mayara Stefane na brasileira), uma aluna de 17 anos prestes a se formar e que, desde a morte de sua mãe, quando ainda tinha 5 anos, vive com sua tia Tamaki (Eri Fukatsu na dublagem original e Shallana Costa na brasileira). Um dia, a caminho de sua escola, esbarra em Souta (Hokuto Matsumura na dublagem original e Fábio Lucindo na brasileira), jovem misterioso de 21 anos que tem a missão de fechar portas que, se permanecerem abertas, causarão grandes desastres naturais no Japão. Por circunstâncias do destino, ambos devem se ajudar para impedir uma grande catástrofe no país.

Após trabalhos consistentes, Makoto Shinkai viu o seu nome ser elevado ao grupo de grandes diretores de animações japonesas com o lançamento de Your Name, ainda em 2016, obra essa que, para muitos, permanece como o seu magnum opus. Seu estilo, tal qual alguns dos “companheiros” desse seleto grupo, como Hayao Miyazaki, Satoshi Kon e Mamoru Hosoda – apenas para citar alguns –, é bastante autoral e facilmente perceptível, de modo que a audiência rapidamente identifica quando um filme conta com a sua direção/escrita.

A começar pelo lado visual, baseado em lugares reais do Japão com forte saturação e contraste entre luz e sombras. Há, também, uma elevação desse realismo, quase como se os cenários, sempre estonteantes, fossem versões aprimoradas da realidade. Narrativamente, aborda de maneira majoritária relações interpessoais e seus inevitáveis obstáculos, como por exemplo distância (Cinco Centímetros por Segundo) ou tempo (Jardim das Palavras).

A bem da verdade, esse “estilo” rendeu críticas ao cineasta, sob a alegação de que suas obras acabariam por repetir as mesmas fórmulas, argumento esse, se não infundado, no mínimo injusto. Afinal, não se vê comentários semelhantes – ao menos não com a mesma frequência – sobre os trabalhos de diversas outras pessoas. Nesse sentido, mais parece haver resistência à sua ascensão, o que não seria um problema per si, desde que não travestida de crítica construtiva.

Desde 2016, Shinkai passou a inserir e se utilizar de desastres naturais como elementos narrativos, algo que nos permite, inclusive, enquadrar os seus mais recentes trabalhos (Your Name, O Tempo com Você e Suzume) como uma trilogia, conectados pela temática abordada – semelhante à Trilogia da Vingança, de Park Chan-wook (Mr. Vingança, Oldboy e Lady Vingança). Neste filme, porém, a abordagem é prática, real, e extremamente pessoal ao diretor.

Em que pese a familiaridade de brasileiros a eventos catastróficos que afetam incontáveis pessoas, como o Rompimento de Brumadinho e o Incêndio da Boate Kiss – apenas para citar alguns –, a experiência japonesa acaba sendo muito mais intensa. A convivência do país com desastres naturais, como tsunamis e terremotos, dá uma perspectiva única quanto à essa problemática. Isto porque, enquanto as nossas maiores tragédias nacionais poderiam ser evitadas por meio de mecanismos de controle melhor desenhados, o mesmo não pode ser dito quanto aos eventos pelos quais passam os japoneses, não sendo possível, por exemplo, impedir movimentos na crosta terrestre.

Em Suzume, em que pese a ausência de confirmação em tela, há elementos suficientes para que a audiência perceba que o desastre que vitimou a mãe da protagonista – e que dialoga com toda a temática envolvendo as portas e lembranças do passado – foi, justamente, o Grande Terremoto do Leste do Japão, que ocorreu em 2011 e chegou, até mesmo, a acarretar uma catástrofe nuclear. Pode-se inferir que o evento inspirou os outros trabalhos recentes do diretor, contudo, aqui, a ocorrência é direta.

É difícil compreender a magnitude do terremoto que vitimou quase 20.000 pessoas e que deixou sequelas em todos que viviam no país. Shinkai, que à época morava em Tóquio, sentiu em primeira mão como esse momento afetou toda a nação e busca, por meio desta obra, relembrar essa questão. Um modo elegante e simples de tratar de uma questão complexa, para ligar as gerações mais novas às mais antigas, afinal, a tragédia de 2011 aconteceu há 12 anos, conforme ele próprio reconhece:

“Passaram-se doze anos desde então. A geração mais jovem do Japão que não tem memórias do desastre está aumentando. No entanto, aquele foi um acontecimento enorme que literalmente abalou violentamente todo o Japão. A recuperação ainda não terminou. Portanto, ao representar o terremoto em uma obra de entretenimento, eu penso que consegui conectar a geração mais jovem com as memórias do que aconteceu.”

Makoto Shinkai

A jornada de Suzume e Souta, então, tem como temática central não apenas superar acontecimentos ruins, mas, verdadeiramente, reconciliar-se com o passado – em especial, a protagonista, que ainda não conseguiu processar de maneira correta o trauma deixado pela morte de sua mãe. Nesse sentido, é interessante notar como o diretor se utiliza de portas como uma metáfora sobre ancestralidade, superação e cura. Não à toa, elas apenas podem ser fechadas quando nos conectamos às lembranças daqueles que lá viveram:

“Precisamos pensar em como devemos fechar as muitas portas que deixamos abertas”

Makoto Shinkai

Dessa maneira, o cineasta busca representar o inerente desejo de viver – não apenas de existir – do ser humano. Em que pese a proximidade diária com a morte, os personagens escolhem, sempre, persistir. Assim, a reconciliação com o passado se presta, também, a permitir uma vida totalmente plena.

Todavia, em que pese a temática, é interessante notar como esse talvez seja o filme mais engraçado do diretor. A mera transformação de um dos protagonistas em uma pequena cadeira de madeira amarela com três pernas convida o espectador a esse cenário mais cômico. Há, de fato, diversas oportunidades em que o absurdo da situação, por si só, fará com que a audiência ria. Uma escolha acertada para balancear o peso da narrativa, evitando que a experiência se tornasse excessivamente dolorosa. Essa transformação, inclusive, acaba por funcionar como um mecanismo narrativo que aumenta a conexão entre os personagens, afinal, cria uma codependência inevitável.

Sobre o tema, ainda, seria impossível não mencionar a maior controvérsia de Suzume: a diferença de idade entre o casal. Questão polêmica, alimentou certa discussão, sobretudo considerando a menoridade da personagem-título.

Contudo, faz-se necessário ressaltar que, em que pese o assunto, no mínimo, atrair atenção de grande parte da audiência internacional – em especial nos Estados Unidos –, o caráter romântico do relacionamento acaba por ocupar uma posição mais secundária na trama, quase reduzido a algo platônico. A conexão entre os dois transcende o interesse amoroso, como por diversas vezes ocorre no Cinema, podendo-se citar como exemplos Encontros e Desencontros (Sofia Coppola) e Jardim de Palavras (do próprio Makoto Shinkai), obras nas quais pessoas se ligam por razões diversas que não o romance.

Aqui, há uma proeminência de senso de dever, pelo posto de Souta como guardião responsável pelas portas, e responsabilidade, pelo passado trágico de Suzume e seu papel nos desastres seguintes. Não deixa de ser, entretanto, algo que pode chamar certa atenção, especialmente considerando que não era estritamente necessário.

De toda forma, Suzume consegue abordar temáticas extremamente interessantes e, mais ainda, pertinentes de forma leve e atrativa. Os belos visuais e roteiro inteligente conjugam as duas facetas da história – a tragédia e a comédia – de maneira competente. Esses fatores, aliados a personagens extremamente cativantes – em especial a protagonista – faz com que esse seja, até o momento, um dos melhores filmes do ano.