Crítica | Mank (2020)

Nota do filme:

É possível que você nunca tenha assistido ao filme Cidadão Kane (neste caso, fica desde já a recomendação), mas é bastante provável que já tenha ouvido falar e muito possivelmente se deparado com o título em uma das inúmeras listas de melhores filmes de todos os tempos. Lançado em 1941, imortalizou um ainda jovem Orson Welles, que dirigiu, escreveu, produziu e protagonizou uma instigante saga a respeito da sede de poder do personagem-título, o magnata das comunicações Charles Foster Kane. Com uma condução afiada e tecnicamente ambiciosa, Welles entregou um memorável ensaio sobre a condição humana, os bastidores dos poderosos e as estruturas de manipulação existentes na sociedade. De quebra, ainda incluiu o mistério em torno de ‘Rosebud’, que, assim como na obra, desperta até hoje o interesse pelo seu significado.

Cidadão Kane também é lembrado por ter sofrido uma das maiores esnobadas do Oscar, quando, após ter sido indicado a nove categorias, levou apenas uma – a de roteiro original. Curiosamente, foi justo na escrita que o realizador cedeu um pouco em seu monopólio criativo e compartilhou a tarefa com Herman J. Mankiewicz, que à época já era um celebrado (e polêmico) roteirista hollywoodiano. É esse o foco de Mank, que se debruça sobre os bastidores da elaboração do texto por Mankiewicz (Gary Oldman) em um retiro a pedido de Welles (Tom Burke), contando com a ajuda de Rita (Lily Collins) e Freda (Monika Gossmann).

O responsável pela direção é o experiente e conceituado David Fincher, que não mede esforços para estabelecer não apenas um universo verossímil com a época na qual os eventos se passam, mas também para fazer parecer que o próprio filme tivesse sido feito no início da década de 1940, incluindo certos preciosismos estéticos, como a leve queimada na borda das imagens durante algumas transições. Tampouco são deixados de lado atos de reconhecimento à obra de Welles, em especial a utilização de flashbacks e até mesmo o breve emprego do deep focus, recurso clássico que marcou Cidadão Kane.

É interessante observar o fato de que, assim como em Cidadão Kane, o roteiro de Mank é igualmente envolto em circunstâncias peculiares, estreitando a ligação entre os dois projetos em tal aspecto. Foi o pai de David, Jack Fincher, quem o escreveu, o que acrescenta um elemento pessoal à empreitada do filho. E é notório como o diretor costuma sair-se melhor em obras mais frias, recheadas de intrigas e cinismo (Seven, Vidas em Jogo, Clube da Luta, A Rede Social), não alcançando o mesmo resultado em histórias mais emotivas (O Curioso Caso de Benjamin Button). Neste sentido, é agradável testemunhá-lo abraçando o desafio.

De maneira didática, Mank aborda bem a Era dos Estúdios de Hollywood, na qual o sistema de estúdios (MGM, Paramount, Warner Bros, Universal, Columbia, RKO e Twentieth Century Fox) organizava a atividade cinematográfica quase como uma linha de montagem. Outro ponto que merece destaque é a trilha sonora composta por Trent Reznor e Atticus Ross, colaboradores habituais de Fincher e que aqui entregam mais um trabalho de alto nível. E, diga-se de passagem, é admirável a versatilidade da dupla, que também foi responsável pela trilha de Soul, conseguindo assim duas indicações ao Oscar 2021 na categoria (no caso da animação da Pixar, junto com Jon Batiste).

Além de passado e reconstituição, há espaço para a inserção de temáticas que dialogam com o mundo de hoje, uma tendência que está presente com força entre os indicados deste ano, vide os exemplos de Judas e o Messias Negro, Os 7 de Chicago e Uma Noite em Miami…. Se nas produções mencionadas é a questão racial que estimula debates com a contemporaneidade, aqui é a força das notícias falsas e a criação (e repetição exaustiva) de narrativas caluniosas com o intuito de influenciar o resultado de uma eleição. Nada mais atual, e que é representado sobretudo – mas não apenas – por William Randolph Hearst (Charles Dance), o magnata que serviu de inspiração para o Charles Foster Kane do longa de 1941.

Quanto ao elenco, a principal qualidade da atuação de Oldman é preencher certas lacunas que o roteiro deixa sobre a vida/personalidade do personagem (algo que será abordado com mais detalhes no próximo parágrafo), dando indícios do tipo de pessoa que ele era. Esse cuidado na composição, que passa longe da tentadora caricatura do escritor alcoólatra, resulta em mais uma ótima performance na carreira do veterano ator – e sua reação após a esposa, Sara (Tuppence Middleton), pedir que “se você não pode dizer algo gentil, não diga nada” é brilhante. Já Collins e Middleton não têm a mesma sorte; embora competentes, pouco podem fazer com papéis que são meros acessórios para o arco principal (a “subtrama” envolvendo o parceiro de Rita evidencia que o projeto reconhece esse problema e tenta, inutilmente, contorná-lo). A única personagem feminina que possui um mínimo de história própria é Marion Davis, vivida com sensibilidade por Amanda Seyfried.

Mas, afinal, quem era Herman J. Mankiewcz? Quando nos fazemos essa indagação, percebemos que a resposta não é exatamente o alvo principal do longa. Ou, se é, não é atingido (o que seria ainda pior). Porque embora acompanhemos cerca de uma década de sua vida e os momentos-chave que o levaram a escrever o texto, não criamos uma proximidade verdadeira com aquele sujeito. Longe de ser uma cinebiografia de uma pessoa, Mank é uma cinebiografia de um filme – ou, mais especificamente, cinebiografia de um componente de um filme. O protagonista de Mank é o roteiro de Cidadão Kane, é ele o centro de toda a narrativa. Ironicamente, o fato de que o título faça referência apenas a Mankiewcz e não mencione Welles acaba sendo sua homenagem mais honesta possível.

Mank possui o mérito de reconhecer que fazer uma obra cinematográfica implica no surgimento de histórias a respeito deste processo, e que sim, vale a pena contá-las. Mas dá um passo arriscado ao atrelar em demasia sua trama ao material de origem, pois, ao fazer essa escolha, coloca sua autonomia em xeque, uma vez que nunca será demais lembrar que um filme deve funcionar por conta própria. No fim das contas, quem o assiste ficará com vontade de ver (ou rever) Cidadão Kane? Talvez sim, talvez não, mas esta não deveria ser a régua para medir sua qualidade. Que isto pareça ser o objetivo principal da produção é o seu maior problema.