Crítica | Judas e o Messias Negro (Judas and the Black Messiah) [2021]

Nota do filme:

Quando um filme inclui, já no título, os nomes Judas e Messias, não resta muito mistério sobre certos temas que serão abordados, o que não é diferente neste caso. Assim sendo, confiança, ganância, traição e remorso perpassam as pouco mais de duas horas da produção, que acompanha Bill O’Neal (LaKeith Stanfield), um ladrão de carros que, para evitar ser preso, aceita colaborar com o FBI e atuar como seu informante, se infiltrando nos Panteras Negras e passando informações sobre o presidente da seção do Partido em Illinois, Fred Hampton (Daniel Kaluuya), reportando diretamente ao Agente Roy Mitchell (Jesse Plemons).

Mas o projeto dirigido por Shaka King não se resume a traçar paralelos com a narrativa bíblica baseando-se, para isso, em eventos reais. A sequência inicial, por exemplo, cumpre uma dupla função: utilizando imagens de arquivos, serve tanto para situar o espectador no contexto das lutas pelos direitos civis dos afro-americanos na década de 1960, quanto para nos mostrar que, embora muito tenha mudado e avançado nestas últimas cinco décadas, ainda há muitas continuidades entre aquela época e a que vivemos. Porque quando as cenas das manifestações são acompanhadas de discursos exigindo o fim do assédio e da violência policial sobre a população negra, não é difícil deduzir que se trata mais de um aceno aos recentes protestos do Black Lives Matter do que a qualquer outra coisa. De fato, em uma das imagens surge um edifício em chamas que é curiosamente muito semelhante ao edifício em chamas da foto que se tornou viral durante os protestos em Mineápolis após a morte de George Floyd (cujo brutal assassinato foi há menos de um ano).

King – que está apenas em seu segundo longa – também é eficiente na composição de várias cenas, como a que introduz Hampton durante um discurso. Enquanto o personagem fala, a câmera o filma em um ângulo inferior, indicando imponência; em contrapartida, quando a filmagem se coloca atrás dele, mostrando a plateia, a mesma câmera fica em uma altura superior. Em outro momento, quando o protagonista está conversando com Deborah (Dominique Fishback), a garota aparece sob uma lâmpada que cria uma auréola sobre sua cabeça, enquanto ele é fracamente iluminado por um pequeno abajur na altura da cintura, algo que ao mesmo tempo simboliza a importância dela em sua vida e traduz o estado de espírito em que o ativista se encontrava. Já quando O’Neal se vê em um impasse, a parede atrás dele apresenta uma profusão de galhos e plantas, compondo um cenário caótico e sinuoso, exatamente o que a situação havia se tornado.

O roteiro peca pontualmente por ser mais expositivo do que o necessário em alguns momentos, como em um flashback dispensável para mostrar por que O’Neal foi reconhecido em uma reunião, ou o recurso de utilizar a entrevista para preencher lacunas. Mas são pontos facilmente compensados pela maneira adequada como Deborah Johnson é inserida na trama, com história e intenções próprias e não como acessório, o que faz jus a uma trajetória de luta que já dura décadas.

Outros pontos positivos são o excelente trabalho de trilha sonora, figurino e recriação de época, assim como a maquiagem, em especial a que transforma Martin Sheen no Diretor do FBI, J. Edgar Hoover. O cuidado nos detalhes também encanta, como o suor no rosto de Hampton enquanto faz um pronunciamento mais exaltado. Há espaço até mesmo para alguns discretos momentos de humor, durante o encontro entre os Panteras Negras e os Crowns, e para a atmosfera de filmes de espionagem, além de, é claro, ser praticamente impossível não pensar em Os Infiltrados.

Quanto a Stanfield e Kaluuya, ambos entregam atuações que conduzem a narrativa com segurança e intensidade. Se o primeiro acaba por se converter no centro dramático (e trágico) da narrativa, humanizando sua composição a ponto de nunca o vermos como vilão, ou mesmo antagonista, o segundo, favorecido por um olhar carregado que parece sempre saber algo mais, encarna Hampton como um sujeito explosivamente disciplinado, cuja raiva é direcionada com invejável autocontrole. E Plemons, que no início parece apenas acrescentar um pouco de sofisticação à psicopatia de seu personagem em Breaking Bad, vai revelando camadas de complexidade à medida que os acontecimentos vão se desenrolando.

Com diálogos que o tornam atual (“Um distintivo é mais assustador que uma arma.”) e registro histórico (“Os Panteras Negras são a maior ameaça à segurança nacional. Mais que os chineses, até mais que os russos.”), atuações firmes e um epílogo que, mesmo convencional, desperta as mais diversas emoções, Judas e o Messias Negro tem tudo para, merecidamente, frequentar a temporada de premiações que está por vir.