Crítica | Doutor Sono (Doctor Sleep) [2019]

Nota do Filme:

“Quando eu era criança, havia um lugar. Um lugar sombrio. Eles o fecharam e o deixaram apodrecer. Mas as coisas que viviam lá…elas voltam.”

Danny Torrance

Doutor Sono acompanha o agora adulto Danny Torrance (Ewan McGregor) e a sua convivência com os demônios do passado. Determinado a esquecer os terríveis acontecimentos que ocorreram no Hotel Overlook, lida com o seu alcoolismo por meio de um isolacionismo forte. Todavia, o interesse de Rosa Cartola (Rebecca Ferguson) por Abra Stone (Kyliegh Curran) faz com que se veja forçado a assumir o manto de mentor e salvar a jovem iluminada.

Não é segredo para ninguém o desprezo que Stephen King tem pela adaptação de Stanley Kubrick d’O Iluminado, lançada em 1980 com Jack Nicholson e Shelley Duvall. Na realidade, o desdém foi tamanho que uma nova adaptação da obra foi lançada em 1997 no formato de minissérie, em um acordo escrito que demandou, inclusive, que King evitasse críticas públicas à adaptação original.

Dessa forma, Mike Flanagan (A Maldição da Residência Hill, Jogo Perigoso), diretor e roteirista, tinha uma tarefa um tanto quanto complicada. Isto é, tinha que agradar ao escritor que, claramente, tem uma noção muito nítida de como quer ver o seu trabalho adaptado e, também, aos fãs da obra de Kubrick, uma vez que esse é o referencial para muitas pessoas quando pensam na história. Assim, teve que costurar um longa que funcionasse como uma sequência ao mesmo tempo em que bebe de uma fonte que pouco dialoga com o seu antecessor. O resultado não é desprovido de erros, mas o saldo é certamente positivo.

A começar pelos equívocos, Doutor Sono peca na introdução excessivamente demorada. Com 151 minutos de duração, se o ritmo da história for qualquer coisa que não perfeito, os espectadores certamente se sentirão fatigados. A narrativa se beneficiaria de um corte maior no tempo de tela, deixando que a audiência preencha as lacunas com o conhecimento que possui do filme anterior. Não chega a ser algo extremamente prejudicial como, por exemplo, It: Capítulo Dois, uma vez que as referências a O Iluminado são melhor dosados, mas ainda assim, menos seria mais. Ao mesmo tempo, a introdução d’O Nó, grupo de pessoas que caça os iluminados, seria melhor aproveitada caso menos personagens fossem introduzidos, até porque, com exceção da Rosa Cartola, há pouco a ser aproveitado.

Contudo, se o roteiro se mostra um tanto quanto arrastado, ao menos até a metade da história, as atuações ajudam a manter o espectador entretido. Mike utiliza vários rostos conhecidos por seus outros trabalhos, como Carel Struycken e Henry Thomas – apenas para citar alguns –, mas o trio Ewan McGregor, Rebecca Ferguson e a Kyliegh Curran são os responsáveis por carregar a maior parte da narrativa. Os dois primeiros com o carisma natural que lhes é típico e a jovem Curran que impressiona com um talento que parece muitos anos a frente de sua idade (14). Ademais, adiantando-se a uma possível reclamação dos fãs do antecessor, com o lapso temporal de quase 40 anos, certo é que a utilização dos mesmos atores para cenas que se passam ainda na década de 80 é impossível ou, no mínimo, extremamente difícil. De qualquer forma, destaca-se que Alex Essoe e Henry Thomas (Wendy e Jack Torrance, respectivamente) são competentes quando em tela.

Por fim, não seria possível analisar o filme sem antes destacar o ótimo trabalho do diretor ao lidar com o imponente Overlook. Conhecido pela excelente A Maldição da Residência Hill, aqui mostra novamente que sabe lidar com o conceito de residências amaldiçoadas de maneira ímpar. Há quase uma reverência ao palco do antecessor de Doutor Sono. O Overlook é algo mais que uma construção residencial. É uma entidade. Sua introdução é acompanhada por sons de batidas rítmicas, simulando um coração batendo. O Hotel é um ser vivo que está apenas hibernando após longas décadas vazio, mas acorda preguiçosamente ao pressentir a chegada de novas pessoas. As luzes se acendem lentamente e o Salão Dourado é revitalizado. Aqui, as expectativas se elevam, e a audiência sabe que não poderia haver um lugar diferente para o clímax da história que, destaca-se, é profundamente satisfatório.

Sendo assim, Doutor Sono funciona muito bem como continuação da história de Danny. Por mais que haja erros no percurso, o retorno ao Overlook fará com que o espectador saia do cinema satisfeito. Talvez não seja uma obra-prima, mas tendo em vista a expectativa com a qual Flanagan estava lidando e os interesses que teve que balancear, não deixa de ser impressionante o fato de que conseguiu entregar um trabalho sólido, ainda que longe de ser perfeito.