Crítica | Camille Claudel, 1915 (2013)

Nota do filme:

Camille Claudel? A estudante do Auguste Rodin? Amante? Ela depois virou esposa dele, né? É incontável as vezes que o nome da artista gráfica e escultora francesa esteve relacionado somente ao tempo que viveu ao lado de Rodin, um dos maiores nomes da escultura moderna francesa. É como se o tempo tivesse apagado completamente a sua vivência independente e particular, que foi tão grandiosa quanto a que ela dividiu com o artista francês, em favor de uma misoginia estrutural. Por anos, Claudel criou, isolada em um estúdio em Paris, obras que hoje são consideradas revolucionárias entre os críticos e entusiastas das artes plásticas e na época eram praticamente ignoradas, o que a levou ao declínio emocional e artístico. 

Esse é o ponto de partida de Camille Claudel (2013), longa-metragem de Bruno Dumont que, baseado em cartas trocadas entre a artista e o irmão Paul Claudel, se prevalece dos 30 anos nos quais ela viveu internada em uma instituição mental como consequência desse isolamento em um roteiro que é uma uma grande homenagem e reparação histórica ao legado deixado por ela. Depois do relacionamento com Rodin, a artista, uma das poucas mulheres do ciclo artístico da época, tentou continuar com as suas criações, mas acabou entrando em um estado de paranóia de que suas obras e ela estavam sendo perseguidas por Rodin. Essa resposta pode parecer sem fundamento aos olhos superficiais de quem julga, mas, no fundo, ela não estava em completa insensatez. 

Internada em 1913, a artista, que já vive há dois anos sob essa condição, é retratada na obra de Dumont durante três dias da sua rotina sob uma decupagem totalmente inspirada nos conceitos neorrealistas, descortinando os seus sentimentos e motivações, assim como as ambiguidades da vida e como elas transpassam pela personagem. Apesar de não focar em uma personagem diretamente sociopolítica popular, a obra, assim como os filmes italianos da época, se responsabiliza, sob os ideais de Cesare Zavattini, por ficcionalizar o real, amplificando o imediatismo e o tempo de espera dessas realidades que poderiam ser encontradas a cada esquina. O objetivo aqui, elucidado pelo realismo de Gyorgy Lukács, não é deformar a realidade com uma ideia decadente de manicômio, mas sim articular todas as camadas dessa experiência vivida por uma pessoa que realmente existiu. 

Em uma condução lenta, onde nada de extraordinário efetivamente acontece, é como se o espectador realmente estivesse passando três dias ao lado da artista, observando-a em sua rotina de acordar, lhe darem banho, preparar sua comida, procurar por um espaço onde possa ficar sozinha e esperar pela visita do seu irmão – algo que ela passa o filme inteiro aguardando. Sob essa repetição dos dias e do realismo natural do espaço (foi-se utilizado a equipe e pacientes, todos não atores, do asilo escolhido para filmagens) o filme enfatiza exatamente o que teria acontecido se a câmera não estivesse ali ou se não houvesse uma recriação, de modo a valorizar muito mais a espontaneidade da vida do que a manipulação narrativa que o cinema clássico propõe. 

Não é preciso criar nada quando a realidade dessa artista, com todos os seus deslocamentos, silêncio e gestos, já diz muito. A monotonia aqui é casualmente turbulenta e Dumont soube equilibrar e investigar os constituintes que permeiam essa vida de forma coesa e minuciosa durante o filme a partir dos elementos estéticos e narrativos: a solidão de não receber constantes visitas e de não poder mandar cartas para antigas amigas; o incômodo dos gritos dos pacientes, do tratamento dos médicos e da perda da liberdade; a nostalgia dos tempos que criava; a esperança de um dia sair e retomar a sua vida em um canto só seu; e a “loucura” de perder tudo o que era seu para as mãos de um homem que invalidou todo o seu trabalho. Tudo isso estava explícito na mise-en-scene de cada longo plano. 

Na primeira cena do filme, o espectador já se depara com Camille nua e sendo lavada pelas enfermeiras na frente de todo mundo. Sem oferecer nenhuma palavra, a situação rotineira já apresenta a ausência de qualquer autonomia e privacidade. Em paralelo, logo depois vê-se a artista cozinhando a sua própria comida, único momento que pode fazer algo por si pois alega que corre o risco de ser envenenada. Ela se agarra tanto a esses pequenos atos que quando um dos médicos tenta impedir que ela o faça ela sai em defesa como se sua vida dependesse disso. No decorrer do filme, não é difícil achar cenas nas quais Camille tenta se desvencilhar dos outros pacientes, que vivem gritando à sua volta. Sua rotina é uma verdadeira dicotomia, cujo principal desafio é tentar manter vivos quaisquer resquícios de ser humano enquanto, diariamente, tudo a leva a um apagamento total de sua presença em um lugar onde ela claramente não pertence. 

Sem nenhuma manipulação artificial, como músicas que conduzem a emoção do espectador, a força do filme está na organicidade sonora e ambiental, potencializada por uma interpretação completamente silenciosa e excruciante de Juliette Binoche. A atriz francesa comanda as cenas, praticamente todas sem diálogos, com um desnude total da sua interpretação, que com certeza iria agradar as exigências de Zavattini. Na pele de Camille, Binoche dispõe na tela todas as angústias, revoltas e anseios da personagem, que estabelecem seu lugar no mundo e reverberam certos aspectos sociais da época, através da linguagem corporal e dos gestos. É quase como se a atriz tivesse reencarnado na artista de tão crua que se posicionou diante da câmera. Entregue à realidade dos fatos, Juliette consegue se movimentar pelas ondas de sentimentos da personagem de forma natural que até o espectador esquece que há de fato uma interpretação em jogo. 

Ainda na primeira parte do filme, há uma cena na qual Claudel está andando pelo corredor desmotivada e sem aparente vontade de viver e recebe a notícia de que seu irmão irá visitá-la. Em questões de segundos, Binoche transita entre a depressão para a felicidade esperançosa em uma crise de riso e choro. É impressionante como toda a movimentação da atriz nas cenas é tão latente e acessível que é impossível não se envolver. Se nesse momento o que vemos é uma pequena alegria no meio do pesar, em outro há a personificação da melancolia. Enquanto observa uma representação de um romance por um casal de pacientes, Juliette somente com a força do olhar marejados e com um certo brilho transparece tudo o que ela sente ao ver aquela cena de amor: lembranças do relacionamento com Rodin, de tempos áureos, de algo que ela já foi capaz de viver e hoje lhe foi tirado. 

A direção de Dumont é plena em respeito à essência da realidade da artista. Até mesmo a ausência dos diálogos é uma forma de ressaltar a claustrofobia e solitude da personagem. Afinal, para que falar quando não será ouvida? É um gasto de energia que ela não pode se dar ao luxo. Em contraste com todo o silêncio das outras cenas, ouvi-la falar, portanto, é um momento quase libertário. A intensidade que Juliette Binoche oferece ao único monólogo verborrágico da personagem para o irmão é tamanha que, para além das palavras, a única intenção é a da exposição de tudo o que está entalado dentro de si; era a chance de ser ouvida e compreendida; era, talvez, sua única chance de talvez voltar a viver. 

O único momento que esse imediatismo de Zavattini não é o protagonista do drama é quando o filme se desloca para o ponto de vista de Paul Claudel, já nos momentos finais. Em uma linha narrativa que remete aos discursos de Guido Aristarco, o personagem de Paul é totalmente construído sob um estereótipo em movimento que se contrapõe diretamente com quem Camille Claudel é. Interpretado por Jean-Luc Vincent, o irmão da artista é um ferrenho religioso que não percebe a vida para além dos dogmas, julgando a todos que não se encaixam nesse padrão social que lhe consome. Em apenas um personagem, foi depositado todos as características que definem o machismo, a intolerância e incompreensão – uma reflexão direta dos padrões sociais da época – que Claudel sofre constantemente. Seus movimentos parecem propositalmente calculados para não terem a mesma espontaneidade da primeira parte do filme. 

Sua primeira cena é em uma beira da estrada, onde sai do carro para rezar em um plano que o coloca em um contato direto com o espectador, como se quisesse convencê-lo do que diz. Cada cena foi pensada para representar uma faceta do todo. Se na primeira já fica claro o fanatismo, na próxima dele em um quarto hotel completamente vazio, explicita-se o julgamento do mundo por uma perspectiva intolerante e invejosa: ele escreve uma carta para uma conhecida que, segundo ele, também cometeu o mesmo crime da sua irmã – que agora está pagando o preço. Fica claro que ele ressente o talento dela e julga o papel que a arte teve na vida dela, culpabilizando o fazer artístico pelo estado de loucura de Camille. 

Embora essa mudança cause um certo estranhamento no espectador, em relação com o todo, foi uma inserção narrativa que, na verdade, potencializa ainda mais o espectro emocional. Durante toda a primeira parte do filme, a presença de Paul é quase onipresente na expectativa que a artista coloca na visita dele; é o que a incentiva a levantar da cama nos dias que seguem. Quando Dumont apresenta, sem aviso, que esse personagem é, na verdade, o oposto idealizado por ela, uma tristeza se apropria do restante do filme. Não há mais esperança. A libertação dela é uma ilusão, já que esse homem nada mais é do que a representação da mesma sociedade que a transformou em uma presença absorta. 

Potencializada pela estética e montagem do filme, essa narrativa produz propositalmente uma experiência maçante e desgastante  – assim como foi para ela. Ao final do filme, o espectador se encontra tão letárgico quanto Camille Claudel. Mesmo entre algumas sequências sacais, o diretor consegue, durante os 87 minutos, ir ao cerne da questão a todo momento. Na metade do caminho, o espectador já se questiona como alguém foi capaz de viver desse jeito por 30 anos. É desesperador quando, assim como Claudel, quem assiste percebe que nada vai mudar, a não ser a claustrofobia diária que se materializará cada vez mais. Como defende Zavattini, o filme não oferece soluções e muito menos respostas definitivas, pois a realidade não tem fim – a não ser no momento de sua morte. As respostas estão exatamente nesses pequenos fazeres e sentimentos do dia a dia, que refletem o passado, o presente e até mesmo o futuro dessa artista.