Crítica | Below Her Mouth (2016)

Nota do Filme:

Quantidade realmente não significa qualidade. Essa frase foi usada tantas vezes, em tantos contextos, mas me pergunto se alguém já a tenha relacionado a questão de representatividade no cinema. Afinal, se estamos falando de identidades de minorias na tela, não deveria haver limites. Quanto mais, melhor – ainda mais se falando de grupos que tiveram que lutar para serem ao menos um. No entanto, é preciso um certo cuidado e atenção ao pensar nesta questão, principalmente ao tratar-se do cinema queer, em específico o lésbico.

Há alguns anos, o cinema contemporâneo, em destaque para o segmento independente e cult, tem preenchido certas lacunas ao levar para as grandes telas as vivências ou ao menos personagens dessa comunidade. O problema é que todos parecem nascer de uma mesma fórmula estereotipada e sexualizada, perpetuando clichês que ferem a luta. Vemos aqui, portanto, o efeito contrário da tal representatividade, muito presente no filme Below Her Mouth. 

Lançado em 2016, a obra causou um certo alvoroço pelos festivais por onde passou pelos motivos mais errados. Dirigido por April Mullen, muitos esperavam que o romance entre Dallas (Erika Linder) e Jasmine (Natalie Krill) seria, finalmente, retratado de forma exemplar e digna de ser visto como referência na cinematografia queer. No entanto, ao invés de se aproveitar do olhar feminino, a diretora se entregou ao poço das fórmulas desgastadas, criando mais um filme que nada tem a dizer sobre os personagens ou sobre o mundo.

O filme acompanha Dallas, uma lésbica tomboy que não tem a mínima pretensão de se comprometer com nada além da sua libido e liberdade, e Jasmine, uma editora de moda hétero que vive um relacionamento sem graça e emocionalmente negligente. Carpinteira, Dallas trabalha em uma casa ao lado de Jasmine e desde sempre tinha interesse nela, até que um dia elas se encontram em uma festa para mulheres e começam, num estalar de dedos, um romance. 

Durante os 90 minutos de filme, é exatamente apenas isso que assistimos. Não há desenvolvimento dos personagens, das suas questões pessoais, do mundo ao seu redor. Nada acontece a não ser uma quantidade anormal de sexo. As duas personagens são um reflexo da ausência de qualquer psicologização das figuras femininas, conceito muito presente nas obras do cinema clássico. Suas presenças parecem exercer a mera função de confirmar um estereótipo que, apesar de existir no mundo real, não necessariamente é a representação do todo – os outros tantos filmes que vieram antes já provaram a teoria o suficiente.

De um lado, temos Dallas, que foi criada para representar a ideia masculinizada da lésbica, que se apropria das posturas impostas à masculinidade como se ser atraída pelo sexo semelhante fosse algo destinado apenas aos homens. É preciso ser máscula, impositiva, insensível e reprimida emocionalmente – tudo o que se espera de um homem. Do outro, temos Jasmine, essa figura complexada e infeliz no seu casamento, que se desloca pelo mundo da outra personagem de forma vulnerável, perdida e curiosa, como se estivesse em busca de uma aventura para se libertar das repressões pessoais da vida.

Em todas as cenas de introdução do universo de cada uma e a construção da hibridez espacial das duas, os elementos da mise-en-scene são introduzidos apenas com esse propósito de perpetuação. Logo nos primeiros minutos de filme, Dallas é apresentada em uma cena explícita de sexo que é marcada pela frieza e da desconexão da personagem com o ato e com a pessoa com a qual ela divide o momento. Além do fato dela nem olhar para o rosto da jovem durante o ato e assumir uma postura frígida, antes de ir embora, a mulher pergunta “Did you come?”, já explicitando a característica sexual da personagem.

É como se o sexo fosse a única arma que a pretendente tinha contra ela, para que pudesse mantê-la interessada em vê-la. Não há nada errado em apontar alguém como um ser humano sexual, o problema, no entanto, é que parece que esta é a sua única camada durante todo o filme. Nas cenas seguintes, vemos a personagem constantemente tratando outras mulheres como encontros descartáveis, como obtenções fáceis que sempre vão estar aos seus pés. 

Já Jasmine, é representada o tempo todo com uma delicadeza quase que ofensiva, como se fosse uma mulher à espera de uma atenção para que a sua existência seja validada. Sua primeira cena, em contraste com a de Dallas, é dela na sala com o noivo em um momento de relaxamento entre os dois. Enquanto ele descansa, ela, sentada em cima dele, pinta as unhas dele e, ao acordá-lo, inicia uma possível noite de sexo entre os dois. No entanto, o noivo percebe a pintura das unhas e se sente desconfortável, tendo usado inclusive a palavra “violado”, como se fosse uma grande afronta a sua ideia socialmente construída de masculinidade.

Não é preciso dizer que a noite termina com um tom de desconforto e Jasmine se sentindo solitária. O importante aqui é perceber a construção da personagem: a pintura das unhas representa um atitude fetichista; a iniciação do coito após esse ato a sexualização; e a rejeição a ausência de conexão emocional entre ambos. Todos esses elementos reunidos representam a grande mulher hétero que irá ameaçar a estabilidade do mundo da homossexual. 

O relacionamento das duas é composto totalmente por esses elementos e não consegue se desenvolver para algo mais além, limitando a complexidade das dinâmicas para além da grande tela já que a única coisa que mantêm uma conectada à outra é a novidade sexual entre elas. Ouso dizer que 90% das cenas entre as duas são delas transando, direcionando um filme para uma ótica romantizada da pornografia. Surpreendentemente, já que trata-se de uma diretora mulher, as cenas de sexo entre as duas mulheres colocam seus corpos em posições extremamente prevalecidas pela cinematografia.

Se por um lado tem-se a tentativa – falha – de naturalizar o corpo feminino ao exibir cenas das personagens trocando de roupa e deitadas nuas, por exemplo, do outro não há como fugir da constante escopofilia filmada. Gravadas em sons diretos, amplificando os sons de gemidos e do contato corporal, as cenas se utilizam de planos abertos e close-ups dos corpos, reutilizando a fórmula presente, novamente, em filmes clássicos na época de enaltecimento do feminino por meio da presença de grandes atrizes hollywoodianas. 

Estes momentos, que deveriam representar ao menos uma certa intimidade privada – já que o relacionamento das duas é uma traição ao noivo de Jasmine – entre as duas, torna-se um espetáculo voyeurístico e erótico. As escolhas cinematográficas não mostram nada além de seus corpos nus: os close-ups quebram com a ideia da Renascença em favor da fetichização extrema dessa relação, de modo que a narrativa, aqui simplista e oca, é deixada em segundo plano para que o prazer visual assuma o controle e enalteça os desejos e as fantasias de quem assiste.

As filmagens sexuais são uma verdadeira performance, um espetáculo pornográfico, e os destaques de seus órgãos genitais e o movimento dos mesmos em conjunto são a tônica do filme, reforçando uma ideia de que os encontros homoafetivos são apegados somente ao físico. Vale ressaltar que o problema em si não são os close-ups, mas sim a mise-en-place dos mesmos, que remetem, de forma inferior e oposta, ao uso feito por Àgnes Varda, por exemplo, em “As Duas Faces da Felicidade”. Ao filmar a cena de sexo entre os dois amantes, Varda se utiliza de planos de destaque de suas mãos, corpos entrelaçados, peitos, mãos, trazendo uma poesia e valorização daquela troca.  

Preso nessa estagnação de concepção criativa e construtiva, o filme não consegue conceber qualquer ritmo e equilíbrio para que ao menos isso pudesse prender o espectador. Desde o primeiro minuto, já é apresentado todos os elementos e informações das personagens, afinal, já não eram muitas para início de conversa, e todo o desenrolar da história torna-se previsível e sem graça. Até mesmo a fotografia, que de início é um acalento aos olhos do espectador, se adaptando de acordo com os espaços exibidos e as energias ali presentes, se transforma em mais um cansaço narrativo.

Já quase no fim do filme, o roteiro tenta fazer uma virada de curva, um aprofundamento na relação de ambas, ao explorar pedaços do passado de cada um. Descobre-se que Dallas, embora tenha tido pais que a apoiaram quando decidiu assumir sua sexualidade, sofreu quando criança por não ser entendida pelo mundo, e que Jasmine teve uma experiência homoafetiva quando jovem que a traumatizou, pois a mãe descobriu em flagrante. São bons elementos para se trabalhar se já não fosse tarde demais e se não tivessem passado despercebido. 

Nesse momento, seria uma chance de abordar questões de extrema relevância na discussão queer, como heterossexualidade compulsória, homofobia internalizada, pautas de gênero, entre outros, trazendo o debate para a contemporaneidade e oferecendo uma importância ao movimento que cada vez mais tem se esforçado em compreender as suas diversas ramificações. Além de não mergulhar nessa abertura, que teria dado uma singela significação para obra como um todo, a diretora opta por uma abordagem romantizada e um tanto quanto infantil das duas.

No momento em que ocorrem essas confissões, que são colocadas como algo importante para ambas, principalmente para a personagem da Dallas que é reprimida e não compartilha a sua história com ninguém, o filme passa de uma pornografia para uma fábula ao mostrar as personagens em passeios em carrossel de parques, pela praia, trocando fotografias, com uma postura de pré-adolescentes acompanhadas de um voice-over de falas como “eu compraria iogurte para você”. Essa linguagem carrega em si uma dualidade que define o filme: o tom infantil, junto à sexualização, remete à ideia romantizada de um relacionamento que se sustenta somente no sexo, já que moralmente e sentimentalmente nada tem a oferecer; é quase como a construção de um sonho perfeito de foreplay.