Crítica | Drive My Car (Doraibu mai kâ) [2021]

Nota do filme:

A primeira coisa que pode chamar a atenção do espectador em Drive My Car é a sua semelhança com Como na Canção dos Beatles: Norwegian Wood (2010), uma vez que ambos são baseados em histórias do aclamado escritor japonês Haruki Murakami e ambos levam o nome de uma música do quarteto de Liverpool em seus respectivos títulos (do mesmo disco, diga-se de passagem). Assim, a pessoa que estiver familiarizada com o – bom – longa de 2010, dirigido pelo vietnamita Tran Anh Hung, pode se perguntar se há ainda uma terceira semelhança, ou seja: será que Drive My Car possui os mesmos tons melancólicos que predominavam em seu “par” da década passada? A resposta, goste-se ou não, é um retumbante sim.

Baseada no conto homônimo (incluído na coletânea Homens sem mulheres), a história gira em torno de Yûsuke (Hidetoshi Nishijima), um ator e dramaturgo incumbido de dirigir uma adaptação de Tio Vânia, célebre peça do russo Anton Tchekhov. Viúvo há dois anos – e profundamente atormentado por isso –, o protagonista conhece Misaki (Tôko Miura), uma jovem motorista que é designada para conduzi-lo enquanto durar a produção do espetáculo. Possuindo dificuldades, cada um à sua maneira, em lidar com tópicos sensíveis de suas vidas, os dois personagens vão aos poucos desenvolvendo uma proximidade (entre si, mas também com demais colegas de trabalho) que lhes permite seguir em frente.

É notável a segurança com que o diretor Ryûsuke Hamaguchi conduz a narrativa, jamais perdendo o controle de seu ritmo, apesar da extensa duração (179 minutos). Além disso, o realizador é competente na composição de suas cenas, como a que mostra o artista falhando ao tentar acender um cigarro, o que, se considerarmos o que ele havia presenciado anteriormente, se converte em um raro (talvez único) momento de humor do longa. Ou então, a elegante transição das rodas de um veículo para os carretéis de uma fita cassete, ou ainda quando Yûsuke atravessa hesitantemente uma “fogueira” durante um momento-chave da produção, no qual sua aproximação com Misake começa a se estreitar. Mas o grande exemplo fica por conta da passagem – uma das mais belas do Cinema em 2021 – que traz justamente dois cigarros sendo erguidos através de um teto solar, brilhante não apenas por retomar o objeto, mas também por tudo o que representa naquele instante.

Igualmente admirável é a transposição às telas da atmosfera que Murakami costuma imprimir em sua literatura de ficção. A melancolia, que de tão onipresente quase se torna um personagem à parte, é salientada por uma paleta dessaturada e fria que ressalta a ausência de efusividade daquele universo. Isso faz com que o carro de Yûsuke, dirigido por Misaki, dotado de um vermelho vivo, se destaque todas as vezes que entra em cena, ganhando os contornos simbólicos de um lugar especial. O figurino também desempenha seu papel nesse aspecto, trajando o protagonista com vestes escuras que sugerem um abatimento ininterrupto. Até mesmo a fixação do escritor pela origem etimológica de nomes próprios está presente.

A direção também se destaca em um prólogo que, surpreendente em sua longa duração, estabelece Yûsuke como um homem cuja vida parece se resumir à casa e ao trabalho, alternando suas cenas entre o cotidiano doméstico ao lado da esposa (Reika Kirishima) e a rotina nos palcos. Desse modo, compreendemos facilmente o tamanho e o peso de sua dor durante os créditos iniciais, pois é como se aquele sujeito tivesse perdido metade de suas razões para viver.

Mas de nada adiantaria se tais esforços não fossem correspondidos por uma atuação que os aproveitasse, e Nishijima não deixa a oportunidade passar. Através de olhares, andares e postura corporal, o ator monta uma figura cujas ações indicam sempre uma convergência para escancarar o vazio que sente. Já Miura (que também é influenciada pelo figurino, surgindo regularmente com roupas mais largas que lhe dão uma aparência diminuta e até mesmo infantilizada) consegue despertar nossa simpatia mesmo sendo monossilábica. A mesma simpatia é oferecida pelo casal interpretado por Park Yu-rim e Jin Dae-yeon, cujo carisma e calor humano amplificam ainda mais a solidão dos protagonistas. E é interessante notar que na edição 2022 do Oscar, dois dos indicados à categoria de Melhor Filme contam com personagens que utilizam linguagem de sinais.

Para todos os efeitos, Drive My Car não é um filme fácil, confortável ou desprovido de barreiras (mas quem disse que precisa ser?). É uma história sobre pessoas perturbadas pelo luto que encontram nas relações humanas o único apoio possível, agarrando-se aos encontros como a singular estrada que dê algum significado à vida que, no fundo, não querem abrir mão. Seus personagens tateiam desesperadamente por uma resposta sem saber exatamente qual a pergunta, e suas trajetórias aparentemente banais nos deixam refletindo por um bom tempo após o fechar das cortinas. Como um bom livro de Murakami.