Nota do Filme:
Há atualmente uma tendência global cinematográfica de rotular filmes que possuem relacionamento homoafetivos como filmes LGBTQ+, o que é, de certa forma, prejudicial, por definir a obra apenas a isso, e até estigmatizante por conta de uma certa parcela de cinéfilos/críticos que ninguém deveria se importar. Contudo, há filmes que rompem esse rótulo, ou melhor, não são reduzidos a apenas um romance gay entre duas pessoas, como o presente objeto dessa crítica.
“Na França do século XVIII, Marianne (Noémie Merlant) é uma jovem pintora que recebe a tarefa de pintar um retrato de Heloise (Adèle Haenel) para seu casamento sem que ela saiba. Passando seus dias observando Heloise e as noites pintando, Marianne se vê cada vez mais próxima de sua modelo conforme os últimos dias de liberdade dela antes do iminente casamento se veem prestes a acabar. ”
Há um perfeccionismo em Sciamma com o olhar e os toques com esse filme, pois, por conta do excelente roteiro assinado também pela diretora, o timing desses detalhes deve ser preciso para que a narrativa se desenvolva devida às diversas camadas do texto.
Desse modo, a diretora/roteirista tem um cuidado para desenvolver o enredo, pois ela pega os elementos que compõe a trama principal, de que Marianne deve pintar Heloise, e os utiliza de forma subentendida para chegar a conclusão. Por exemplo, Marianne observa os gestos do dia a dia de Heloise para realizar a pintura, mas por Sciamma pavimentar o longa para o final desde o início, esse simples mecanismo que a trama possui para criar o suspense é subvertido com a tensão sexual, mas sem ser explorada, de forma que fique nas entrelinhas.
Além disso, essa atmosfera erótica do roteiro é a segunda camada do texto, pois o desafio de realizar a pintura é o que predomina, que não entrega nada rapidamente, e, quando está quase revelando desiste, ratificando o erotismo, pelo menos até a consumação dessa lascívia. Ainda, conforme o filme avança, o jogo de poder entre as duas é mais evidente, o que intensifica ainda mais a tensão sexual entre ambas, com o roteiro segurando essa euforia e disputa entre elas até o ato inevitável, além de tratar sobre temas como opressão feminina, dualidade, liberdade do ser e arte, principalmente daquelas produzidas por mulheres.
No mais, a diretora faz uso de uma direção inteligente, pois alterna entre os movimentos de câmera muito bem, utilizando a câmera na mão para colar no rosto dos personagens, principalmente das duas protagonistas. Desse modo, ela cria a tensão que o texto necessita, pois há o mistério sobre pintar o quadro, envolvendo-o com o atrito sexual que há entre as personagens.
Do mesmo modo, têm-se a direção de arte e o som que contribuem para a criação dessa atmosfera. A primeira monta a casa que se passa a narrativa com muito azul, para demonstrar a angústia de Heloise em relação ao seu casamento arranjado, que é refletido por suas roupas e na sua personalidade, além de demonstrar como ela afetou Marianne, visível no seu figurino nas cenas iniciais e finais do longa. O segundo elemento é composto da mixagem e edição de som na qual ambos capturam o isolamento do cenário, cuja a trama se passa numa ilha, utilizando para isso a combinação de sons convencionais, como uma pisada, com o ambiente, que é o silêncio, e isso se torna audível, como alguém esgueirando pela casa à noite.
Vale ressaltar também que a fotografia que intensifica ainda mais o trabalho da direção de arte, quando está dentro da casa, aplicando o amarelo como meio termo entre o azul de Heloise e o vermelho de Marianne a fim de criar o sentimento de dualidade, além de que nos planos abertos transforma as paisagens em verdadeiras pinturas, o que coaduna com o que foi dito em cima.
Contudo, a edição possui falhas no ritmo, prejudicando quem não se imergir na obra, tornando-se longo demais para alguns. Ainda, é necessário ressaltar a elegância da montagem ao utilizar match cuts, com uma das cenas mais icônicas disso presente em 2001: Uma Odisseia No Espaço (1968), na qual transita de um espaço a outro sem perder a coerência.
Entretanto, deve-se exaltar a potência das atuações das duas protagonistas, que são fundamentais para o roteiro funcionar. Noémie Merlant e Adèle Haenel entregam performances substanciais compostas de olhares, toques e gestos. Uma complementa a outra e vice-versa, ação e reação, pois cada uma demonstra um significado com cada atitude. Por exemplo, Heloise olha com luxúria enquanto Marianne enxerga apenas a modelo. E no resultado do embate dessas contradições que as atrizes crescem e se destacam.
Portanto, Retrato de uma Jovem em Chamas (2019) sem dúvidas é um dos melhores filmes de 2019, e, como outros de épocas passadas, por exemplo, Quando Duas Mulheres Pecam (1966), realiza magistralmente esse embate entre duas protagonistas que se conectam tanto a ponto de uma se perder na personalidade da outra, e, também, não ser definido em um gênero inexistente de filmes como LGBTQ+, pois é um drama que conta uma história de um romance entre duas mulheres, ou melhor, como esse amor entre elas floresceu naturalmente.
Apaixonado por cinema, amante das ciências humanas, apreciador de bebidas baratas, mergulhador de fossa existencial e dependente da melancolia humana.