Sua história começou em 1944, muitos títulos já preencheram a sua fachada, muitas pessoas por ali já foram e vieram. Obras aconteceram, novos proprietários em cena, um novo nome a cada contrato. Porém, uma coisa nunca mudou nessa trajetória popular do Estação Net Rio, localizado em Botafogo na Rua Voluntários da Pátria, 35. O cinema, puro, diverso e democrático, sempre foi a raiz motriz por trás da grande tela e agora esse patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro, força vital de fomento da produção nacional e de fora do circuito comercial com exibições, mostras e debates, está em risco de ser demolido para alimentar a especulação imobiliária que está longe de cevar a alma de um povo.
A notícia anunciada ontem pelo jornal O Globo sobre a intimação recebida pelo grupo Estação os alertando sobre o risco de despejo inquietou os fãs da sétima arte e uma petição já foi criada como uma tentativa de salvar a cinefilia carioca. A movimentação nas redes de amigos, parceiros de trabalho e desconhecidos me fez pensar em muitas histórias que vivi no escurinho das salas do Estação e que só existiram graças aos filmes, apenas para citar alguns deles, que integram essa lista.
Beanpole (2019), de Kantemir Balagov
Sinopse: A Segunda Guerra Mundial devastou a cidade de Leningrado, demolindo seus edifícios e deixando seus cidadãos em frangalhos, física e mentalmente. Duas jovens buscam significado e esperança na luta para reconstruir suas vidas entre as ruínas.
Era o primeiro dia do Festival do Rio em 2019 e ainda não fazia ideia do que queria assistir. Não que eu tivesse muita liberdade de escolha, visto que precisava estar no trabalho em algumas horas. Beanpole era o único que encaixava no meu horário, aparentemente tinha a Tilda Swinton e sua narrativa trazia mulheres como foco – o filme fala sobre a Rússia pós-guerra sob a ótica feminina. Parecia uma interessante escolha para uma manhã quase tarde durante a semana. O que eu não esperava era que o filme não tinha nem a Tilda (era apenas uma atriz muito parecida com ela) e, além de realmente ser interessante, iria mudar a minha percepção sobre o cinema para sempre.
Até hoje, sou incapaz de rever e só de pensar consigo sentir novamente todas as emoções psicológicas e físicas que transitaram pelo meu corpo do primeiro segundo da tela preta até o fim. Fiquei tão enternecida que nem a deliciosa pipoca doce do Estação foi capaz de acalmar meu coração. Com o lanche quase que intacto, lembro de pegar o ônibus rumo ao trabalho e já pensar: Beanpole é uma obra de arte e merece ser celebrada sempre que possível e para sempre.
A claustrofobia política e emocional de Beanpole (2019)
Maria do Caritó (2019), de João Paulo Jabur
Sinopse: Cansada da vida solitária que leva, Maria sonha em encontrar um verdadeiro amor. Prometida pelo pai para ser entregue virgem a São Djalminha, um santo de quem ninguém nunca ouviu falar, só mesmo um milagre poderia ajudar.
Sexta-feira e a única perspectiva era a solitude. Sabe aqueles dias que parecem que um nevoeiro fez moradia sob a sua cabeça e você só pensa em fugir dele, mesmo sabendo que vai te seguir aonde for? Pois bem. Decidi me isolar no único lugar que ele não poderia me seguir e me senti em paz na companhia de Lília Cabral.
Sem pretensão alguma, Maria do Caritó foi um afago naquela noite de sexta-feira e, longe de trazer o olhar crítico que já faz parte de mim, posso dizer que foi uma deliciosa, divertida e esperançosa experiência que fez mais do que muita gente, provando que o cinema é a cura de muitos males. O brasileiro então, que resgata toda a elegia quimérica da sua cultura nos pequenos detalhes, nem se fala. Esse é o maior de todos!
And Then We Danced (2019), de Levan Akin
Sinopse: Merab, um dançarino competitivo fica desequilibrada com a chegada de Irakli, um colega de profissão rebelde. Uma história sobre maioridade, ambientada nos limites conservadores da moderna Tbilisi.
Mais um que faz parte da odisseia que é participar de um Festival do Rio. O dia começou no Centro da Cidade e terminou na Zona Sul, quase na Barra. Era a última sessão do dia, tinha marcado de ver com um amigo e estava tudo organizado para que desse tudo certo. E mesmo com o trânsito, chuva e atraso realmente deu. E como deu! And Then We Danced não é o melhor filme do mundo e confesso que durante a sessão por vezes me vi decepcionada. No entanto, essa foi a astúcia do filme comigo.
Depois da sessão, me peguei pensando no que não havia gostado tanto e nesse processo acabei me encantando perdidamente por tudo o que já havia gostado. Só consegui lembrar das cenas de afeto, de música, do pé batendo em som diegético, do simples corpo em movimento. Pouco me importava se o roteiro era assim ou assado, ou se a direção pecou nisso e aquilo. Nos acertos, era tudo muito belo, potente, diferente do que já tinha visto e parecia ter o poder de me fazer transcender. O filme foi para mim o que deveria ter sido mesmo: uma experiência cinematográfica sensorial. E só por isso já merece ficar na memória.
Pacarrete (2019), de Allan Deberton
Sinopse: Nascida e criada em Russas, Pacarrete alimenta desde criança o sonho de ser artista e viver a vida na ponta da sapatilha. Mas as mulheres nasceram para casar e ter filhos em sua conservadora cidade. Ela parte para Fortaleza, onde consegue se consolidar como bailarina clássica e se torna professora de dança. Com a aposentadoria, ela retorna para sua cidade natal. Lá, ela pretende continuar seu trabalho artístico, mas só encontra desrespeito à sua arte.
Quem nunca viu um filme e gostou tanto que vivia performando o meme das Meninas Malvadas? Para mim, esse filme foi o Pacarrete, longa que assisti pela primeira vez durante a cobertura do Festival de Gramado em 2019 e revi no Rio logo quando teve sua estreia por aqui, quase um ano depois. Estava sempre atenta para qualquer oportunidade de panfletar a obra e até hoje se me pedirem qualquer recomendação de filme nacional contemporâneo o primeiro nome que sai da minha boca é este.
Pacarrete é simplesmente apaixonante e sua grandeza só pode caber nas grandes telas mesmo. É uma ode honesta, sensível e sublime ao amor pela arte, pela sua vocação e, principalmente, pelas suas crenças e sonhos – aquilo que te completa e que está impregnado em cada passo da sua trajetória. Nunca vou esquecer do murmúrio excitante que preenchia a sala após a exibição, todos comentando cada detalhe, encantados com o Cisne Negro de Marcélia Cartaxo. Maior e melhor do que qualquer outro que venha do exterior que foi embora pelas ruas de Botafogo e do Rio com muita gente.
E é disso que o Estação Net é feito. Assine e compartilhe a petição #FicaEstaçãoNetRio!
As sinopses foram retiradas do Google.
Jornalista Cultural, Crítica de Cinema e Produtora Executiva.