A claustrofobia política e emocional de Beanpole (2019)

Não há dúvida de que o cinema assistido por puro entretenimento, para, como aponta Ismail Xavier, se “transformar no lugar por excelência de manifestação dos desejos, sonhos e mitos do homem, graças à convergência entre as características da imagem cinematográfica e determinadas estruturas mentais da base” (XAVIER, p.23), é válido e necessário. Mas não há nada igual à experiência de se deparar com um filme que te descola, incomoda, entra no cerne da suspensão da ilusão e te despeja da forma mais linda e inquietante possível na crueldade do mundo. Sai-se da sala do cinema, encontra-se o mundo real e aquela representação imagética parece ter se apropriado da mente do espectador. Esse é o efeito inquietante do longa-metragem russo Beanpole (2019), de Kantemir Balagov, que aborda os efeitos pós Segunda Guerra Mundial na vida dos cidadãos de Leningrado a partir da rotina de uma mulher que sofre de episódios de PTSD de tamanha intensidade que seu corpo fica completamente paralisado. A experiência desconfortável que senti me remeteu ao momento que Serge Darney nunca mais foi o mesmo ao se questionar sobre o cinema e sua relação com ele. 

Durante anos, o autor carregou dentro de si a angústia que sentiu ao se deparar com a problemática em torno do travelling de Kapô, um visual até hoje criticado entre aqueles que se entregam à sétima arte a tal ponto que a ideia de se render a ela “para que ela ensine a perceber incansavelmente pelo olhar a que distância de mim começa o outro” parece ser o único caminho a seguir. (DARNEY, p.6) É exatamente assim que me sinto. Só que por motivos opostos. Mesmo debruçado sob perigosa atuação do “lembrar para que não se repita, sem permitir que essa lembrança se torne mais um produto” (BEZERRA, p.15), o filme em nenhum momento, como aponta Rivette, tenta se apropriar absolutamente da realidade para reconstruir um marco cruel e histórico apenas para suprir a cultura voyeur introduzido pela decupagem clássica. 

Nesse contexto moral, tem uma sequência do filme que, nas palavras calorosas de Serge Daney, parece ter sido uma daquelas coisas que me observaram mais do que eu as vi. Sob uma direção que prestigia os sentidos visuais da fotografia e de uma cenografia que diz tanto quanto os diálogos, a câmera se movimenta consciente de seu papel e em nenhum momento abusa do seu limite ético ao filmar mãe e filho em um momento afetivo de brincadeiras que termina com o falecimento da criança devido a mais uma crise psicótica. Atento ao fato de que “fazer um filme é mostrar certas coisas, é também mostrá-las de uma determinada maneira” (BEZERRA, p.15), Balagov não tem intenção alguma de explorar essa dor, direcionando o filme a uma pornografia servente do absoluto realismo. A cena se desenvolve com base em dispositivos que valorizam a sua essência com relação ao seu tempo e espaço exprimida no quadro.

Sem quaisquer indícios do que está por vir, as imagens são apresentadas em planos médios e próximos aos corpos dos personagens, focalizando em suas expressões, responsáveis por transmitir suas verdadeiras emoções do momento somente pela relação dos corpos, sem direção alguma de palavras ou até mesmo trilhas – o único som é o dos barulhos emitidos pelos personagens. O que se vê aqui é apenas uma manipulação da movimentação de câmera e a transparência dos cortes –  duas escolhas técnicas de um uso híbrido da decupagem clássica e da montagem proibida que nada interferem no processo de espremedura dessa realidade. Afinal, como afirma Bazin, “para que haja plenitude estética do filme, precisamos acreditar na realidade dos acontecimentos sabendo que houve trucagem” (BAZIN, p.94). No início da cena, observa-se os dois em um plano aberto como um ponto clássico de localização do espectador, já que agora os dois estão em sua casa (antes é exibido uma sequência do garoto no hospital que a mãe trabalha), e logo depois é utilizado um raccord de continuidade para um plano fechado, evidenciando a intimidade e dos dois. 

A cena se desenvolve para um plano fechado somente na mãe, enquanto o menino atrás dela está fora de foco, para mostrar como a maternidade é intrínseca até mesmo nos momentos pessoais, mostrando uma falta de privacidade e ao mesmo tempo de qualquer incômodo da parte da personagem. Essas interrupções do filho são o que a completam e a fazem sentir viva, tanto que, as cenas seguintes são apresentadas de forma a evidenciar tudo isso. Nessa lógica, a câmera assume um movimento, sem nenhum corte, para mostrar a brincadeira de vai e vem entre mãe e filho, seguindo de um raccord de movimento que será todo conduzido para outro plano que remete à da câmera na mão. Acompanha-se o menino correndo com a mãe atrás para que ocorra uma experiência sensorial de toda a energia depositada ali, de ambas as partes, dessa liberdade, mesmo em um espaço pequeno como o deles, que se sentem quando está confortável ao lado de quem se ama. É um momento puro e espontâneo de uma felicidade que só os dois entendem. 

Mesmo com os cortes, o espectador se depara com uma sequência de pouco mais de três minutos que não é fragmentada, pois há uma interjeição ao “realismo absoluto” que respeita que “a ruptura transformaria a realidade em sua mera representação imaginária” (BAZIN, p.99). A montagem aqui é precisa e pontual ao capturar integralmente o deslocamento entre mãe e filho, pois os planos entre os cortes ainda permitem que o tempo escorra e evidencia que “o essencial de um acontecimento depende de uma presença simultânea de dois ou mais fatores da ação”. (BAZIN, p.98) Visto que o cerne da cena é exatamente a presença dos dois no mundo macro e micro, ela não poderia funcionar se fragmentasse os seus corpos e como estes se relacionam, e, portanto, sempre que se utiliza de cortes pontuais, ela faz com “que a narrativa reencontre a realidade, que um único de seus planos convenientemente escolhidos reúna os elementos dispersados anteriormente pela montagem”. (BAZIN, p.98)

Essa decisão, é claro, não foi meramente estética. Como apontado acima, o tempo é precioso na absorção de todos os elementos da natureza dessa rotina. Após um minuto em um mesmo local, acompanhando o deslocamento de uma mesma situação sem suprimir totalmente o tempo, é como se o espectador já tenha se adaptado à essa substituição do real, permitindo que a “fábula nasça da experiência que a imaginação transcende” (BAZIN, p.96). Ele foi conduzido para esse ambiente pela potência sensorial e não pelas respostas explicitadas, o que, por excelência, já quebra com o padrão da decupagem clássica. 

Com essa estética híbrida, que construiu toda a sua carga emocional na observação íntima dos dois personagens, a interrupção surpresa das sensações de conforto das cenas dos dois brincando pelo episódio de PTSD desloca o espectador para um lugar de completa claustrofobia. Sem aviso prévio, a câmera parada apreende o corpo da mãe paralisa com o filho embaixo para logo em seguida se utilizar de um plano fechado para focar nos detalhes do rosto e da mão da criança, única imagem que temos dela a partir de agora. O som da cena segue natural, de modo que destaca a respiração grunhida, o choro desesperado, o sufocamento. 

Aos poucos, a mão, um dos principais condutores visuais da cena, vai parando de se mexer, sem que a mãe tenha qualquer consciência do que está acontecendo. Como parte da história para além da passividade do voyeurismo, o espectador, instigado pela experiência sensorial, sente as dores como se ele mesmo estivesse ali, como se fosse uma das mães da guerra, sente um impulso de transpassar a grande tela e tomar a situação com as próprias mãos devido a um julgamento próprio e não condicionado. 

É como a guerra: uma ruptura sem aviso para quaisquer possibilidade de preparação para ela. Nesse momento, ele se vê, contra o seu desejo, em confronto com uma representação da realidade que não deixa as ambiguidades da vida (Como pode ter acontecido isso se estava tudo bem?) escaparem, se apropriando delas de forma vazada e incômoda em seu tempo-espaço, pois “certas situações só existem em termos cinematográficos quando sua unidade espacial é evidenciada”. É um aviso de que não se trata de uma mera representação da vida, não é uma ilusão;  apesar de “não prescindir da realidade documental” (BAZIN, p.94), é uma apreensão realista – não absoluta – e crítica do todo e é preciso um olhar atento e ativo para compreendê-la. Essa cena, sob todos os aspectos que a compõem, é uma verdadeira representação da moral da memória e da pornografia da imagem. 

Tratando-se de uma história que reflete os tempos cruéis na Rússia, o diretor se preocupou a todo momento em não transformá-la em um espetáculo, sem explorar a dor que, para muitos, foi extremamente real. Nesse tempo imagético “estendido”, sente-se muito mais a dor quando imagina-se o estado do corpo do menino sem vida do que se tivesse sido mostrado completamente a chegada da morte. Ao não ver, o fato permanece chocante aos olhos, pois não ocorre a possibilidade de uma naturalização de que foi mais uma morte entre tantas, o que acaba dando espaço para uma imaginação que acaba sendo mais brutal do que a própria exibição. O objetivo não é contar a história como ela foi; isso os jornais, por exemplo, podem fazer. O plano aqui é te fazer olhar para ela sob um outro olhar, que não o já explicado, para que, a sua mente já acostumada, consiga julgá-la mais profundamente. Assim, a sequência analisada, abandona o lugar concreto da morte acidental de uma criança e remanesce na sua experiência sensorial enquanto símbolo abstrato de outras problemáticas sociais. 

A morte aqui vai reverberar em uma ideia de perda da sociabilidade, da saúde mental, do abandono social, da destruição externa e interna, da esperança, de tempos áureos e perdidos. É uma metáfora viva e visual dos estragos da guerra, da interrupção repentina da vida de tantas mulheres. Tudo começa na crença da melhora, no abraço às pequenas coisas do mundo para tentar se reconstruir cada dia mais, para terminar na na morte – o símbolo mais doloroso da vivacidade de uma guerra que segue naqueles que sobrevivem enquanto tentam voltar a estar vivos. E é graças a uma mão estendida no ar, na resposta além do que se vê, que essa sequência se infiltra no filme e no espectador com a potência de uma bomba. E é por ela, por este cinema, que até hoje não consegui reassistir a obra – e muito menos esquecer. 

Referências:

Livros:

A experiência do Cinema, de Ismail Xavier.

Artigos:

A Montagem Proibida, de André Bazin.

A moral da memória: quando o cinema vai ao Holocausto, de Julio Bezerra.

O travelling de Kapo, de Serge Daney.