Homem-Aranha 2 – Ainda o Melhor

O texto contém leves spoilers de Homem-Aranha – Longe de Casa

No começo dos anos 2000, filmes de super heróis ainda não eram o terreno fértil que vemos hoje em dia. Não havia grandes Universos Cinematográficos e ainda havia certa incerteza acerca de seu futuro. Em 1998, por exemplo, foi lançado Blade – O Caçador de Vampiros, que não teve forte apelo. Hoje, porém, há a impressão de que não é possível ter uma boa bilheteria se não for um filme baseado em HQ’s. Apenas a título exemplificativo, nos últimos três anos, das dez maiores bilheterias anuais, ao menos quatro são filmes de super heróis.

O primeiro X-Men, lançado em 2000, garantiu o oitavo lugar nas maiores bilheterias. Dois anos depois Sam Raimi deu início à sua trilogia com Homem-Aranha. Um hit instantâneo, foi o terceiro filme que mais arrecadou com ingressos naquele ano, acima de sequências esperadas como Star Wars II – Ataque dos Clones e MIB – Homens de Preto 2. Com o sucesso, garantiu uma sequência que seria lançada em 2004 e seria considerada por muitos como um dos melhores filmes do gênero até então.

Passados mais de quinze anos após o seu lançamento, muitos fãs atestam a qualidade da obra e afirmam ser este o melhor longa metragem do Cabeça de Teia, ainda que em comparação com o ótimo Homem-Aranha no Aranhaverso. Com a estreia de Homem-Aranha – Longe de Casa, o tema volta a receber atenção mas, a despeito da qualidade da introdução do Amigo da Vizinhança no MCU, o presente texto busca demonstrar como, após anos, Homem-Aranha 2 permanece como o melhor filme do aracnídeo.

Protagonista Humanizado

O primeiro aspecto que chama a atenção em Homem-Aranha 2 é o quão humanizada é a narrativa, especialmente no que diz respeito ao protagonista. Após os acontecimentos do longa anterior, acompanhamos Parker tentar conciliar a sua vida pessoal com os seus poderes. Ao mostrar o dia-a-dia do protagonista, Sam Raimi consegue deixar clara à audiência uma questão irrefutável: ser o Homem-Aranha torna a vida de Peter pior.

Ter as suas responsabilidades são um peso quase que insustentável em sua vida: lhe custa a sua amizade com Harry Osborn, impede que acompanhe a faculdade, faz com que seja constantemente demitido, não permite que seja claro com sua tia acerca da morte de seu tio Ben e, ainda, destrói qualquer chance de um relacionamento amoroso com Mary Jane. Dessa maneira, o diretor consegue, rapidamente, fazer com que o espectador simpatize com o personagem, uma vez que assiste o protagonista ser punido justamente por ter atitudes heróicas.

Ainda, utiliza-se da dicotomia desejo/responsabilidade também no arco do vilão, o que funciona como um bom “espelho” ao protagonista. Por mais que Octavius diga que “a inteligência é uma dádiva a ser utilizada pelo bem da humanidade”, suas ações deixam claro que o conceito foi corrompido e se tornou mera busca pessoal pelo sucesso. O seu sonho de concluir o seu projeto científico, a despeito do mal que possa causar a terceiros, sobrepõe-se ao seu senso de preocupação com o coletivo.

Isso faz com que haja mais que um embate físico entre ambos, sendo a divergência também filosófica. Ao mesmo tempo, justamente por haver esse paralelo entre mocinho/vilão, a sua redenção final é crível. Nesse sentido, Peter funciona como a personificação do que o antagonista deve aceitar como verdade:

“Doutor Octopus – Era o meu sonho.

Peter Parker – Para fazer o certo, às vezes, nós temos de ser fortes e desistir daquilo que mais queremos. Até dos nossos sonhos.”

Seus problemas financeiros, em especial, geram um interessante conflito, uma vez que se vê forçado a vender fotos para que seu patrão possa difamar o seu alter ego perante a sociedade. Trata-se de uma situação extremamente relacionável, de modo que aumenta o realismo do personagem. Tal circunstância, porém, não dá sinais de que pode ocorrer na encarnação atual, uma vez que Peter surge sob a asa de Tony Stark, um dos homens mais ricos do planeta. Por mais que tenha falecido em Ultimato, o trailer de Longe de Casa já demonstra uma proximidade entre Happy e Parker, motivo pelo qual é difícil crer que dinheiro será um problema relevante na vida do herói.

De volta a Homem-Aranha 2, o roteiro aproveita, ainda, a oportunidade para se aprofundar na psique do protagonista. Isto porque o peso que carrega é tão grande que começa a perder seus poderes até que, eventualmente, cede, para tentar salvar a sua vida pessoal. Intimismo nesse nível é raro no gênero que, via de regra, prefere conflitos externos – “o futuro da Terra está em jogo” – a conflitos internos – “eu devo abrir mão da minha responsabilidade para viver a minha vida?”.

Dessa forma, quando Peter efetivamente escolhe o caminho difícil, o caminho da responsabilidade, há um forte impacto. A memorabilidade das cenas é diretamente proporcional ao grau de empatia que a audiência tem com o personagem e há muito com o que empatizar com o arco do herói.

Trama Independente

Por mais que a integração presente em um Universo Cinematográfico como o MCU seja, sem dúvidas, um fator positivo, por vezes ele diminui a importância e impacto de um filme fechado em si mesmo. Isto é, desenvolver pontas soltas ao mesmo tempo em que planta easter eggs o bastante para que os fãs reconheçam aquele longa como parte de algo maior é um equilíbrio um tanto quanto complicado, a prova viva sendo o longa Homem de Ferro 2.

Nesse sentido, há certa elegância em um filme que se propõe a trabalhar um arco específico – no caso em questão, uma análise das escolhas do protagonista e qual o grau de responsabilidade que deve assumir, criando um conflito entre desejo/dever. É difícil imaginar Homem-Aranha 2 se beneficiando, por exemplo, de menções a diversas obras anteriores ou, ainda, estabelecendo um terreno fértil para projetos futuros.

Ao se fixar em uma temática específica, Raimi pode se aprofundar de maneira mais intensa em situações que entende relevante. Fanático por quadrinhos, escolheu justamente uma das tramas mais icônicas do Cabeça de Teia – Spider-Man: No More! – cujo resultado, sem dúvidas, ajudou a moldar a era de Hollywood que hoje podemos apreciar.

Por fim, destaca-se que filmes em um Universo Cinematográfico como o MCU podem, de fato, aprofundar-se em temáticas mais complexas e apresentar um produto final extremamente coeso. Soldado Invernal, dos irmãos Russo, por exemplo, trata de um importante debate acerca do direito à privacidade versus segurança pública. Todavia, ao balancear diversas variáveis, evidentemente é um trabalho mais árduo e, portanto, um resultado diferenciado é mais raro.

Ação e Consequência

Por mais qualidade que os filmes recentes do aracnídeo tenham, há sempre uma sensação de falta de peso/impacto em cenas de ação. Ao contrário, por exemplo, do embate entre o Homem-Aranha e o Duende-Verde ao final de Homem-Aranha, no qual o espectador percebe nitidamente a visceralidade dos golpes e o quão efetivamente debilitado o herói fica ao ser atingido (mais será dito especificamente acerca de cenas de ação do Homem-Aranha 2 em tópico adiante), o mesmo não pode se dizer, por exemplo, de De Volta ao Lar e Longe de Casa.

No primeiro, muitas são as batalhas que Peter enfrenta no decorrer da história. Jamais, porém, a audiência tem noção do quão perigoso/exigente isso é, com exceção, talvez, do momento no qual deve sair dos escombros de um prédio. Na sua sequência o problema permanece. A despeito da ótima coreografia, a ação pouco significa. Não há urgência nas batalhas e o embate não é emocional, pelo contrário, é quase padronizada. Destaca-se, em especial, o momento no qual Peter é, literalmente, atropelado por um trem e a audiência mal sente o impacto da situação.

Ao mesmo tempo, a ausência de consequências nítidas torna a narrativa quase que procedural. Explica-se que, em Longe de Casa, Parker deve impedir os Elementais, do contrário o planeta poderá ser destruído. A questão é que a S.H.I.E.L.D. já está ciente da ameaça e, por mais que Fury diga que ele é o único disponível, certo é que há incontáveis outros heróis que podem ajudá-lo a impedir essa fatalidade, sendo o seu não comparecimento mero artifício narrativo – problemática clássica do MCU, que por vezes se vê forçado a criar desculpa pouco críveis para justificar a ausência de todos os personagens já introduzidos no seu Universo.

É um problema típico de filmes do gênero conseguir criar consequências com as quais a audiência possa se relacionar, uma vez que, por óbvio, o planeta não pode ser destruído, até porque iria prejudicar o calendário de projetos seguintes. Em Homem-Aranha 2, a sensação de perigo funciona justamente porque é intimista. Por mais que haja uma batalha externa ao personagem, aqui representado no vilão Doutor Octopus, o embate interno entre os desejos de Peter e a aceitação de sua responsabilidade como herói ditam o tom do roteiro. As suas decisões de abandonar e, posteriormente, reassumir o manto de Homem-Aranha funcionam como ponto chave referente às ações e consequências da história.

Sam Raimi

Sam Raimi, conhecido pela saga Uma Noite Alucinante, um clássico dos anos 80, traz uma bagagem interessante ao filme. Seu conhecimento em um terreno tão único quanto terror/comédia faz com que Homem-Aranha 2 conte com momentos marcantes, sobretudo no que diz respeito ao que se espera de um filme de heróis. Nesse sentido, situações claramente cômicas pelo desconforto que causam, que poderiam facilmente ser apenas caricatas, funcionam, de modo a complementar a obra de uma maneira única. 

Entre os dois, porém, o fator que se sobrepõe no background do diretor é, certamente, o terror. Isto porque consegue facilmente construir uma atmosfera de horror permeada por tensão. O uso da câmera de maneira a ressaltar o desastre inevitável: o simples movimento suspeito de um objeto acompanhado pela leve desconfiança de um personagem que, rapidamente, ignora a suspeita por achar que está imaginando coisas. Fala-se, é claro, da excelente cena do Doutor Octopus no hospital, talvez, o melhor exemplo da expertise de Raimi. Surpreendentemente brutal para um filme tido como infantil, traz ao longa uma camada maior e mais profunda acerca dos limites do gênero.

J. Jonah Jameson (J.K. Simmons)

É incontestável que a performance de J.K. Simmons como o infame J. Jonah Jameson, repórter responsável pelo Daily Bugle em sua inquisição midiática contra o Homem-Aranha ajudaram a sedimentar o tom da trilogia. Caricato na medida certa, o personagem servia perfeitamente como alívio cômico ao mesmo tempo em que aumentava o drama pessoal do protagonista, visto que se via forçado a trabalhar difamando a si mesmo.

Quando ocorreu o primeiro reboot, havia, em O Espetacular Homem-Aranha 2, planos para introduzi-lo novamente, o que nunca veio a se concretizar. Muito se especulou, inclusive, que se daria à dificuldade em encontrar outro ator para personificar o jornalista de maneira tão icônica quanto Simmons, fato esse que parece ter sido confirmado pela aparição do ator no MCU, incapaz de substituir Simmons à altura.

A Cena do Trem

O segundo encontro entre Homem-Aranha e Doutor Octopus, que termina após o heróico esforço do protagonista em parar um trem em movimento para salvar os passageiros é, até hoje, um dos momentos mais catárticos de todo o gênero. Apenas para deixar perfeitamente claro, quando se diz “todo o gênero”, não é um eufemismo. Inclui-se, aqui, longas como Ultimato, Cavaleiro das Trevas e até mesmo Logan.

Isto porque, em uma cena de aproximadamente dez minutos, todas as melhores características do herói – físicas e psicológicas – são perfeitamente destacadas, bem como se vê o impacto que o Amigo da Vizinhança tem em Nova York. Em um combate com início em uma torre de relógio, vemos que, por mais que não conte com um leque muito extenso de poderes, Peter consegue aproveitar todos ao máximo. O simples uso de teias parece algo a mais em suas mãos, motivo pelo qual consegue, ao menos a princípio, superar o vilão. Contudo, o personagem de Alfred Molina, ciente de sua desvantagem, destrói os freios de um trem, forçando o protagonista a parar o veículo.

Nesse momento as suas limitações ficam mais evidentes. Se para alguns personagens parar um trem em movimento não é tarefa hercúlea, o mesmo não pode ser dito acerca do Homem-Aranha. Ao mesmo tempo, porém, sua força psicológica entra em cena. Por mais que não esteja propriamente equipado para lidar com a situação, conforme dito em Aranhaverso, ele sempre se levanta. A audiência assiste, então, o Amigo da Vizinhança superar os próprios limites e, logo após desfalecer, ser salvo por aqueles que havia salvado.

Aqui cabe um parênteses quanto à utilização heróica de cidadãos nos filmes do Aranha até então. Isto porque o lançamento do primeiro Homem-Aranha, ainda em 2002, foi fortemente impactado pelo atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. Ele sempre foi um símbolo de Nova York. Sua habilidade de lançar teias para trafegar rapidamente sempre foi bem utilizada em um local com tantos prédios e arranha-céus. Nesse sentido, o trailer original, divulgado quase um ano antes do lançamento, era uma grande cena envolvendo justamente as Torres Gêmeas. Ainda, o material de divulgação tinha cartazes envolvendo os edifícios. Após o atentado, porém, a Sony teve que alterar a sua estratégia de marketing. Ao filme original foram acrescentadas duas cenas: o final, com o herói pendurado em uma bandeira americana – situação que, como muitos aspectos da trilogia, seria desnecessariamente forçada em Homem-Aranha 3 – e, mais importante, a manifestação de cidadãos o apoiando na Ponte do Queensboro, em seu confronto com o Duende-Verde:

Sacanear o Aranha é sacanear Nova York! Mexeu com um de nós, mexeu com todos nós!

Foram todos aspectos para que a cidade se unisse, por meio de um senso de propósito comum, e pudesse, efetivamente, se reerguer. Em Homem-Aranha 2, Sam Raimi eleva esse fator e coloca o residente no cerne da ação, permitindo que possa, mais uma vez, representar esse sentimento de união. Aqui, vemos a identidade secreta do herói, algo cujo segredo lhe custou amizades, relações familiares e interesses amorosos, ser revelada a completos estranhos, que, em um pacto de solidariedade, concordam em manter o segredo. Assim, pela primeira vez na narrativa, Peter, não Homem-Aranha, recebe crédito pelo peso que carrega.

“Não vamos contar para ninguém.”

A cena serve, ainda, para desmistificar a ideia do herói intocável. Conforme dito por um dos passageiros:

“Ele é só um garoto da idade do meu filho.”

Sendo assim, é impossível não sentir a catarse trazida pela história. Trata-se de um conto sobre amadurecimento extremamente intimista que, por melhor que seja o cenário atual, está em falta no gênero. Por mais qualidades que as outras encarnações tenham, em especial na ótima atuação de Tom Holland, há uma rara qualidade que destaca Homem-Aranha 2 dos demais e o mantém como o melhor filme do Cabeça de Teia.