Entrevista | Diretor René Sampaio fala sobre levar ”Eduardo e Mônica” às telas de cinema

No auge dos seus 14 anos, René Sampaio, um simples adolescente da classe média de Brasília, ouvia Legião Urbana com um fervor digno do título de fã número um e já sonhava em levar essa paixão para as grandes telas brasileiras. Hoje, aos 47 anos e algum tempo depois, Sampaio não apenas realizou o sonho desse menino como também se transformou em um dos expoentes em manter o legado da banda vivo através do seu trabalho como diretor. Depois do sucesso de “Faroeste Caboclo”, thriller inspirado na canção homônima de Renato Russo, René mergulha nas aventuras românticas de “Eduardo e Mônica” enquanto já se prepara para lançar um documentário sobre o intérprete e mais um longa inspirado em outra obra do repertório do Legião.

Com um fascínio para além do romance, o diretor buscou contar uma história que explorasse diferentes questões que permeiam as relações humanas, entre elas a alteridade — sociopolítica e pessoal. Em entrevista ao Cinematologia, René conversou sobre o processo criativo, a sua relação com a banda Legião Urbana e a importância do debate acerca de assuntos políticos no Brasil de hoje. Com Alice Braga e Gabriel Leone nos papéis principais, “Eduardo e Mônica”, que foi exibido no Festival do Rio, chega aos cinemas brasileiros em 6 de janeiro de 2022 e promete uma “experiência coletiva como ir a um show do Legião Urbana”. Confira o nosso bate-papo! 

Cinematologia: Esse é o seu segundo filme que explora as músicas do Renato Russo. O que nesse universo criado pelo artista em suas músicas te atrai tanto? 

René Sampaio: Faz sentido para mim adaptar a obra e o material dele. Legião é uma banda formativa para mim, eu sou fã desde moleque das músicas do Renato, que continuam atemporal e pertinentes, talvez, infelizmente, até mais em algumas músicas, como “Que País É Esse?”. Nascido e criado na classe média de Brasília, minha vida era muito parecida com a de Eduardo em vários sentidos: no sentido econômico, de gostar de tocar violão, ter um grupo da igreja. Então, eu acho que essa música e esse personagem, especificamente, tem muito a ver com as pessoas que eu conhecia.

Por exemplo, nós tínhamos que pesquisar para entender o que era Bauhaus. (risos) As coisas que eram ditas na música, que para outras pessoas, mais elitizadas intelectualmente, não eram desconhecidas, para nós era um mistério. O lado do Eduardo representava muito a minha vida e o lado da Mônica o que eu imaginava que eram os artistas, o que era intelectualidade. Eu tenho um fascínio para além da história de amor, por esses universos que se comunicam e depois se transformam um na vida do outro. 

C: Você diria então que esse filme se tornou um pouco autobiográfico? 

RS: Não, eu não acho que seja autobiográfico. Eu não tenho uma história de amor nesse molde, de ter vivido um relacionamento com essa essa mulher mais velha que te educa e te transforma em um homem. Mas acho que ele é muito autorreferencial quando falamos em coisas que fazem sentido para Brasília, para os lugares, para as sensações e para as emoções que passei na cidade. 

Foto: Leo Aversa

C: Por ter uma abordagem mais pessoal, de que forma a experiência de filmar “Eduardo e Mônica” foi diferente para você em comparação com ‘’Faroeste Caboclo’’

RS: Por muitos motivos foi diferente. “Faroeste Caboclo’’ é um thriller e responde às convenções desse gênero. Tem tiro, morte, drogas, então é um universo particular. O “Eduardo e Mônica’‘ é um filme solar como a música, é uma comédia romântica, então a minha resposta para esse trabalho foi diferente. É claro que mantive os aprendizados da vida, que você adquire ao fazer um longa, mas eu tive que começar do zero.

C: O trabalho de fotografia que pode ser visto em “Eduardo e Mônica” reflete muito essa abordagem leve e afetuosa que você queria para o filme, que conta uma história de amor muito “solar”. 

RS: O “Faroeste Caboclo’’ partiu de uma paleta de cores que vinha do terroso nas primeiras cenas e terminava na terra vermelha do Distrito Federal que fazia uma alusão ao sangue. No “Eduardo e Mônica”, a nossa paleta foi buscando aquecer internamente os personagens, de modo que conforme eles vão mudando, evoluindo a partir desse contato com o outro, a paleta vai ficando mais colorida. É um colorido que acrescenta cores, o oposto do que acontecia no ‘’Faroeste’’, onde nós íamos tirando as cores até restar poucas no final. Embora seja com a mesma equipe do ‘’Faroeste Caboclo’’ — que eu repeti 100% porque nos demos muito bem –, as escolhas estéticas são completamente diferentes para esse segundo filme. 

C: Todo mundo que já ouviu a música “Eduardo e Mônica”, em algum momento, já imaginou como seriam essas pessoas, o que traz uma enorme responsabilidade em acertar nas escolhas. Quando você soube que a Alice Braga e o Gabriel Leone seriam as escolhas perfeitas para o papel? O que na interpretação deles te convenceu? 

RS: Quando eu faço um filme, eu não penso em um ator específico. Eu penso em um espírito. Eu era muito aberto a qualquer ator que trouxesse algo que acrescentasse a essa experiência. Quando falei com a minha produtora, ela sugeriu o nome da Alice e eu achei a ideia excelente. Afinal, quem vai dizer que não poderia ser a Alice? Ela entrou e saiu do projeto várias vezes porque uma hora tinha dinheiro, depois não tinha roteiro, ela não tinha agenda, então fomos consideramos outras pessoas. Mas na hora de gravar mesmo, eu perguntei se ela teria disponibilidade caso gostasse da nova versão do roteiro. Ela só tinha 10 semanas para gravar e duas semanas para se preparar com o Gabriel, então eu acho que o papel era para ser dela, estava destinado.

O Gabriel Leone era muito mais novo e ele não foi muito bem no primeiro teste. Ele mesmo sentiu que não havia sido tão bom e pediu para refazê-lo porque queria muito fazer esse personagem. No segundo dia, ele arrebentou e entregou algo que não acreditamos, então entendi que ele só estava nervoso por querer tanto esse papel. Quando juntamos os dois juntos, eles tinham muita química e isso reflete na tela, parecia que eles tinham sido feitos um para o outro. 

C: Apesar de ser baseado nesse clássico atemporal, que vive no imaginário de gerações, qual a história que você quis contar para além do que está nos versos da canção?

RS: Para além da história, eu quis falar sobre a alteridade, sobre como é importante você escutar o outro e, de verdade, se colocar no lugar dele e não apenas “permitir” que ele possa dizer o que pensa. Alteridade, para mim, é se colocar no lugar do outro e isso passar a fazer sentido para você. O objetivo dos personagens é que eles conseguissem se olhar no olho, depois que eles passam por certas experiências, por certas declarações de amor. A mensagem é um pouco sobre escutar, entender e tentar sair dos conflitos nesse mundo tão polarizado que estamos vivendo e como a gente consegue com respeito, amor e carinho se relacionar. 

C: A ilustração do olhar de um para o outro e a transformação que os dois personagens vivem está muito presente na sua mise-en-scene, principalmente na cena em que eles têm o primeiro encontro no Teatro Nacional. A câmera brinca com esse jogo de poder que existe entre eles e até mesmo, em alguns momentos, deforma essa imagem a ponto de não definir exatamente a posição da Mônica com relação ao Eduardo. Como foi a construção dessa cena? 

RS: Nós temos mais sorte do que juízo (risos). Claro que algumas coisas são pensadas, como a questão do ponto de vida (a Mônica, por exemplo, começa a ser olhada de baixo para cima pelo Eduardo, e ela olha de cima para baixo. Depois de um certo momento, ele inverte o jogo e a câmera segue esse olhar), mas ao trabalhar em cima disso outras soluções vão se fazendo presente no momento da filmagem. Agora que temos o pensamento, como vamos colocar isso imageticamente?

Quando chegamos para filmar essa cena, sabíamos o que queríamos ilustrar, mas o movimento de câmera foi algo que me encantou na hora, sem ter um raciocínio prévio. Foi uma solução que veio com a sensibilidade do momento, mas que corresponde com o pensamento anterior de querer colocar o Eduardo embaixo e a Mônica em cima. 

C: Além da nostalgia que naturalmente o filme traz, por se tratar de uma letra do Renato Russo, o filme, que se passa nos anos 80, propõe uma viagem musical no tempo ao optar por ter como trilha sonora sucessos internacionais da década e que fazem parte da memória de grande parte do público. Por quê a preferência por um repertório internacional quando se trata de um filme nacional baseado em um clássico de um artista brasileiro? 

RS: O filme tem umas 8 músicas internacionais que eu achei que faziam sentido para o universo da Mônica e do Eduardo e que tocavam na rádio naquela época. Tem uma cena da Mônica descendo uma escada que toca 15 segundos de Take on Me, do A-ha, e o resultado ficou incrível. Foi uma fortuna e a minha produtora é uma louca porque ela compra todos os meus baratos. Quando ela assistiu a ‘’Once Upon a… Hollywood’’),do Tarantino, ela ficou encantada ao ver que ele usou Miss Robinson (The Beatles) em uma única cena da personagem atravessando a rua.

Ali, ela decidiu que se ele fez, nós também iríamos fazer. Com essa trilha, essa cena da Mônica transporta a audiência para lugares afetivos. Afinal, é um filme que busca emocionar os jovens de todas as idades, desde o cara que tem mais de 40 anos e viveu aquela época, que se emociona pela memória do jovem que ele foi, e os de hoje, que vão se emocionar por ver uma história de amor tão verdadeira.

C: Apesar de se tratar de uma comédia romântica, o filme aborda diversas questões debatidas na época da Ditadura Militar que ainda são pertinentes para os tempos atuais, como conservadorismo, exílio e militarismo, e que surgem naturalmente na relação entre Eduardo, Mônica e o avô dele. Qual a importância de trazer esses assuntos de consciência política nesse filme e no Brasil de hoje? 

RS: Quando escrevemos este roteiro em 2018, não imaginávamos que o Brasil ia estar no lugar que ocupa hoje. Esses são os mistérios da arte, né? Por um acaso calhou de estarmos estreando em um momento que o Brasil segue discutindo essas questões na mesa do jantar. Fazia muito sentido para a gente que o avô do Eduardo fosse muito conservador. Fomos evoluindo sobre esse personagem, às vezes indo para um lugar mais leve, outras não, sempre explorando outras facetas do conservadorismo dele.

É triste que nós estejamos no mesmo lugar falando sobre ditadura, sobre falta de liberdade, regime militar, o golpe de estado. Por um acaso calhou de estarmos estreando em um momento que o Brasil segue discutindo essas questões na mesa do jantar. Esse filme ganhou uma contemporaneidade que nós não imaginávamos. 

C: Nos tornamos uma sociedade onde o radicalismo e opressão imperam. Você imaginava que estaríamos ocupando esse lugar politicamente mais uma vez, na forma que está sendo?

RS: Eu nunca imaginei que tivéssemos que ficar defendendo a nossa democracia do jeito que temos que defender hoje em dia. Para mim, era algo consolidado, e hoje em dia abrimos o jornal e nos deparamos com notícias que mostram que há indícios de golpe. É inacreditável que tenhamos chegado a esse ponto em tão pouco tempo. Eu espero que esse filme faça as pessoas refletirem. Eu acredito que 80% das pessoas não tem esse pensamento do avô, mas muitas estão contaminadas pelo fogo que os radicais têm colocado na rua. Eu acho que o filme mostra que há outras alternativas e que não precisa ser desse jeito. 

C: O fato do filme ser uma comédia romântica contribui para estabelecer esse diálogo? Acredita que a ideologia presente no filme será melhor recebida — e compreendida — por isso?  

RS: As questões políticas não são o centro do filme, elas fazem parte dele são abordadas na medida certa para o que esse tipo de gênero e história comportam. De toda forma, o objetivo dessas cenas e desse contexto é sempre em relação aos personagens, ao que esse Eduardo precisa ter e ganhar para ter autonomia tanto sobre a Mônica quanto sobre o avô para escolher o seu próprio caminho. Ele está em um momento de dúvida, porque se trata de um familiar que ele ama, mesmo que não concorde com ele, criando um conflito real que acontece fora da bolha da internet.

Tem pessoas que você admirou a vida inteira e agora estão defendendo coisas que você acha incabíveis. Tem algo muito humano que nasce nessas relações a partir desses conflitos ideológicos que me interessa. Esse é o mundo real e o fato do filme se passar nos anos 80, um mundo sem redes sociais, nos facilitou entrar na realidade dessas relações de forma mais profunda. 

C: O que significa para você conseguir lançar um filme no Brasil de hoje, cuja cultura do cinema, sobrevivente de uma pandemia e de um governo reacionário, está ressurgindo aos poucos?


RS: Eu fiquei muito chateado quando o filme não foi lançado em 2020. Nós exibimos o filme no Festival Internacional de Miami alguns dias antes da pandemia começar e foi uma experiência incrível ver pessoas que se emocionaram sem saber nada da música. Estávamos com vários festivais engatilhados, mais de 15 convites, e tivemos que abrir mão de todos. Mas acho que agora, talvez, o filme signifique ainda mais.

Nós passamos por tanta coisa difícil e, por ser um filme tão caloroso e amoroso, acredito que possa ser uma boa escolha para quem decidir ir ao cinema. É um chance de se reencontrar com a emoção que é estar no escurinho com um filme que vai te dar um abraço depois de tudo o que o brasileiro passou nessa pandemia. Precisamos de um pouco de alívio e “Eduardo e Mônica” é um filme que nos deixa para cima. É com esse sentimento que talvez devemos começar 2022, buscando um futuro melhor com uma nova esperança.