Crítica | Whitney Houston: I Wanna Dance With Somebody (2022)

Nota do Filme:

Quando Whitney Houston terminou a sua apresentação no programa de Merv Griffin, no ano de 1983, o apresentador alertou o público que o assistia: “Vocês não vão esquecer esse nome!”. Assim foi feito e desde então Whitney passaria a fazer parte de um imaginário cultural que parecia representar idealmente um mito de uma democracia racial americana em um período conturbado para o país. A intérprete de clássicos eternizados nas paixões e desilusões de bilhões de pessoas era amada por todas as tribos e se tornou a Princesa Americana, um símbolo que não representava nem um terço da mulher que ela era e poucos conheciam. O sucesso estratosférico fez com que Whitney abrisse mão de muita coisa, principalmente a si mesma. Essa dança entre o glamour e a simplicidade é o que a cinebiografia Whitney Houston: I Wanna Dance With Somebody tenta apresentar ao público, traçando os primeiros movimentos da artista no mundo da música, passando pelos altos e baixos da sua carreira e relações pessoais, até a sua despedida trágica do showbusiness. 

Dirigida por Kasi Lemmons e estrelado por Naomi Ackie, a obra, nessa tentativa de abordar todos os grandes acontecimentos dessa trajetória, não consegue encontrar um ritmo e, portanto, nenhuma construção que faça jus à grandeza dessa mulher e intérprete errante. Sob uma linguagem célere e rasa, o roteiro se apresenta como um produto que tem pressa de chegar ao seu auge, nesse caso o declínio, ao mesmo tempo que não esconde o medo de se aprofundar no seu objeto de criação. É, portanto, um longa mais interessado em servir à uma cronologia do que mergulhar no seu personagem, já que não existe um leit motiv e muito menos um tom estabelecido. Nos seus primeiros atos, essenciais para a compreensão da personagem, o que vemos é semelhante à uma colagem das suas primeiras fases enquanto uma jovem adolescente e adulta, visto que a direção assume uma linguagem que não permite que as cenas se expandam o suficiente e nas quais não há definição do seu foco. O constante uso de uma câmera em movimento marcada por um tremor acompanhado de uma montagem repleta de cortes, planos banais e passagens de tempo refletem esse afã da obra em chegar logo no lugar eternizado do imaginário cultural tanto das conquistas quanto das polêmicas públicas. 

É compreensível esse desejo diante da possibilidade de haver uma maior conexão com a grande maioria do público, que anseia pelo drama e ascensão. No entanto, em termos fílmicos, chegar nesse lugar sem qualquer aprofundamento prévio, tanto narrativo quanto imagético, em nenhum dos aspectos primordiais da sua vida enfraquece o que vem a seguir – nesse caso, a angústia, o uso das drogas, o casamento conturbado com Bobby Brown e os pais e, por fim, a tragédia anunciada. Quem Whitney foi antes da descoberta e sua vivência no passado não deveriam servir aqui apenas para cumprir uma passagem de tempo. Suas motivações, desejos, pensamentos e relações pessoais são essenciais para a compreensão da complexidade dessa mulher e são a chave para muitas das suas atitudes e escolhas em sua fase mais madura. Sendo assim, o filme joga contra si mesmo e situações e relações pontuais são desperdiçadas, sem que elas assumam o seu próprio clímax, como é o caso da sua saída de casa, a relação com a Robyn, os primeiros sucessos. É um filme que não se permite respirar em grande parte da sua duração e há sempre uma expectativa que nunca é alcançada, deixando-nos com o gosto de quero mais, pois entendemos que há uma importância e relevância presente ali que fará falta mais a frente. É uma corrida sem recompensas dado ao fato de que, para chegar ao que seria considerado o seu ápice, o longa abriu mão até mesmo de sequências essenciais, como as de grandes hits da carreira, os filmes estrelados, dentre outros, e o pouco que foi visto é construído de forma rés, sem que a decupagem e mise en scène transmitam qualquer impacto.  

Nos seus atos finais, o longa de Lemmons parece compreender a importância da delonga e permite que algumas cenas possam se prolongar, sem que sofra muitos cortes ou o uso da movimentação [sutilmente] inquieta da câmera. Isso acontece, principalmente, nas cenas nas quais vemos Whitney em um lugar mais vulnerável, mais humano, e não à toa são as sequências mais fortes do filme. São os momentos onde o filme parece priorizar a sua personagem, suas facetas e emoções, abrindo espaço para um mergulho mais profundo em quem essa mulher pode ter sido. Há um entendimento implícito de que são momentos grandiosos, individualmente, mas que, dentro do contexto geral, parece desconexo da obra que existe até ali. São nas cenas com o pai, filha, um fã e ex-marido, sem falar da sequência do seu comeback na Oprah, que começamos a ter um vislumbre maior de como a jovem Whitney conversa com a adulta. Conseguimos aqui nos conectar mais diretamente e ativamente com o filme já que compreendemos as universais emoções do ser humano. Mesmo com a simplicidade do texto, sem grandes nuances, a condução permite que as interpretações mostrem além das palavras, se prevalecendo do sensível. 

Whitney Houston: I Wanna Dance With Somebody é, portanto, um desperdício de narrativa, que tinha em mãos uma trajetória singular e que foi transpassada por grandes situações que, infelizmente, nunca serão anacrônicos – como racismo e colorismo, o vício às drogas, homofobia, etc. É claro que o filme não tem obrigação alguma de levantar qualquer bandeira, afinal, uma obra cinematográfica não deve nunca servir aos nossos ideais, mas, a partir do momento que a história da personagem vem carregada de tamanha potência e pluralidade, porquê escolher acenar para todas essas camadas e não explorá-las dentro dessa jornada? Afinal, Whitney foi quem foi exatamente por conta disso e, a partir do momento que o filme escolhe transitar por algumas delas de forma rasa, anula completamente uma grande parte da sua personagem dentro desse universo tão bem recriado sob o olhar cuidadoso e afetuoso da arte e caracterização. Nessa vontade de falar sobre tudo, terminou-se por não falar quase nada. (Recomendo que assistam ao documentário Whitney, lançado um ano antes do filme e que preenche lacunas importantes da obra de Lemmons.) 

Mesmo que sem muita inventividade estética e formal, o longa estrelado por Naomi, apesar de tudo, demonstra respeito pelo legado à frente do público de sua personagem, enaltece seu talento e conquistas ao invés de terminar a sua história somente em um quarto de hotel. A atriz Naomi Ackie brilha no papel e é possível sentir o apreço e admiração que a mesma sente por Houston na sua interpretação extremamente diligente e carinhosa. Whitney Houston e sua voz transcendem para lugares que ainda não entendemos e quando saímos com a imagem desse ícone fazendo história ao cantar o medley de “I Loves you, Porgy”, “And I’m Telling You I’m not Going” e “I Have Nothing” no evento American Music Award em 1994 e entendemos que, mesmo em meio às intempéries da vida, ela nunca poderia ser definida pelos fardos do caminho e que seu lugar de mito não vem do idealizado: vem exatamente do fato dela conseguir proferir o etéreo com toda a sua intensa humanidade.