Crítica | Pessoas Normais (Normal People) [2020]

Nota da Série:

Duas pessoas, dois mundos tão iguais e tão diferentes ao mesmo tempo. Na história de Sally Rooney, escritora e produtora da minissérie, conhecemos Marianne Sheridan (Daisy Edgar-Jones) e Connel Waldron (Paul Mescal), dois jovens normais, que acompanhamos desde a época da escola até o fim da faculdade. A trama traz questões relevantes, como a dificuldade de se relacionar com outras pessoas e a incômoda sensação de não pertencimento, esta que assola a todos nós em algum momento da vida.

A série também traz outros assuntos de máxima importância, que podem, inclusive, gerar gatilhos em algumas pessoas, como a depressão profunda que atinge um dos personagens, a abordagem real e crua das consequências do suicídio para aqueles que ficam, e até algumas cenas de violência, tanto física quanto psicológica. É importante ressaltar que a série não faz apologia a nada disso, ela apenas traz os desdobramentos destas questões, tanto na rotina dos personagens principais quanto na das pessoas que os rodeiam.

Há pontos da história em que o dito acaba ficando pelo não dito, e a mensagem é passada de forma muito mais clara do que se alguém tivesse falado alguma coisa; isso acontece muito na relação de Marianne com a própria família, que é até mais ativa na série do que no livro, e a adaptação cai muito melhor do que eu imaginava. No que diz respeito à dinâmica familiar, seu lar é composto pela mãe e pelo irmão, que são muito frios e distantes da menina. Ninguém ali se entende ou mesmo tenta se entender, e tudo acaba sempre com um dos dois direcionando pequenos gestos de indiferença para Marianne. A indiferença vem acompanhada de toques significativos de crueldade quando é o irmão quem interage com ela.

O ponto mais marcante da história é, sem dúvidas, as coisas não ditas por Marianne e Connell. Mas, frustrando todas as minhas expectativas, essas coisas todas não chegam em um momento e são, finalmente, jogadas no ventilador; passamos boa parte do tempo angustiados com a confusão que eles fazem entre si, e tudo isso porque ambos têm uma dificuldade imensa de expressar os próprios sentimentos. Essa atmosfera em que “o silêncio fala mais alto que as palavras” me lembrou muito o filme Loveless, um drama russo de 2017, onde pouco se diz de fato, mas muito é dito pelo silêncio.

Pessoas Normais não é uma simples minissérie (ou livro, se você também o leu, assim como eu) do gênero young adult como havia imaginado, e sim uma representação sutil e agridoce de como o que não falamos pode se transformar em sentimentos, e como esses sentimentos podem nos levar a ações completamente opostas às palavras que deveriam ter sido ditas, mas que ninguém conseguiu expressar. Na maior parte das vezes, o não dizer acaba por estragar momentos da vida dos dois, que poderiam ser muito felizes e muito mais simples do que foram.

A projeção dos próprios medos no outro acaba provocando um distanciamento todas as vezes que eles estavam indo bem e criando uma conexão mais profunda. O medo interfere muito na relação dos protagonistas, que até se relacionam com outras pessoas, mas nunca conseguem se desvencilhar um do outro por completo; não importa onde estejam e nem quem estejam namorando, Connell e Marianne são essenciais um na vida do outro. Eles se convencem – e tentam convencer seus parceiros, sem sucesso – de que conseguem manter uma relação saudável de amizade entre eles, mas isso sempre acaba interferindo de alguma forma nas relações que tentam construir com outras pessoas.

Os dois têm uma daquelas conexões inexplicáveis e incomparáveis, que todos já tivemos alguma vez na vida, e é por isso que a história é um tremendo sucesso: em algum momento todos já tivemos (ou ainda temos) uma conexão especial com alguém, que não é comparável a nenhuma outra. Mas, é também por isso que a série incomoda outras pessoas: nem todos nós tivemos a coragem suficiente, ou a oportunidade, de manter essa relação em nossas vidas, e uma conexão assim é uma das coisas que fazem a vida ter sentido.

Vale ressaltar que em vários momentos o telespectador pode se questionar se a relação dos dois é realmente saudável, e, em muitos momentos, a resposta pode ser negativa. Mas, por termos a oportunidade de analisar os dois lados da história, algo que não é possível na vida real, essa resposta pode mudar. Eu, por exemplo, fiquei incomodada diversas vezes com a forma como Marianne permite que a tratem mal, sem sequer reagir às agressões direcionadas a ela. Porém, quando conheci sua história de vida e seus pensamentos, pude entender como ela usa seus mecanismos de defesa, e então compreendi o porquê de certas atitudes.

Alguns diálogos entre os dois foram muito marcantes para mim. Um dos mais tristes acontece quando Marianne diz a Connell o seguinte: “Não sei por que não consigo fazer as pessoas me amarem. Eu acho que houve alguma coisa errada comigo quando nasci”. Este é apenas um dos inúmeros momentos em que ela se autodeprecia, se coloca em uma posição de extrema vulnerabilidade e de desprezo por ela mesma. A autopunição constante é uma das características mais marcantes da personagem por toda a sua trajetória.

Connell, por sua vez, também tem seus momentos difíceis, em que se amar é a última coisa que ele consegue fazer. Porém, sua relação com a mãe, Lorraine, é muito sólida, e os benefícios disso ficam claros ao compararmos a forma como ele e Marianne veem a vida. No que diz respeito à figura paterna, ambos não possuem pais presentes, cada um com seu motivo, o que, aparentemente, não os influencia em suas vidas adultas.

Em certo ponto da série, em uma conversa muito difícil entre Marianne e Connell, era possível até ouvir o som do tique-taque do relógio. A sonoplastia nesta série inteira é muito marcante e bem-feita, mas esta cena em específico me chamou muito a atenção, já que as batidas tornavam a conversa ainda mais difícil para ambos, como se o tempo passasse arrastado e eles não quisessem que aquilo estivesse acontecendo.

Os enquadramentos de câmera utilizados na trama foram essenciais para contar essa história. Na maioria das vezes era utilizado o plano focado no rosto dos personagens, o que trazia a sensação de intimidade entre nós e eles, de modo a entendermos tudo o que dizem, e, principalmente, o que querem dizer, mas não dizem. Muitas câmeras na mão e poucos planos abertos foram utilizados, trazendo a percepção de realmente estarmos dentro da história.

O casting para a série foi de uma precisão incrível e merece ser ressaltado. Eu, que havia lido o livro antes de ver a série, e, diferente da experiência traumática que tive recentemente com a adaptação de A Mulher na Janela, gostei muito da forma como tudo foi feito, principalmente a escolha dos atores principais. É claro que nem toda adaptação é perfeita e eu sinto falta de alguns pontos do livro que não foram recriados na série, principalmente os debates políticos que Marianne iniciava aonde quer que fosse, mas, diante de tudo o que analisamos, estou satisfeita com o resultado.

Além disso, a série toda se passa na Irlanda, o que é uma novidade muito interessante para mim, já que as produções que acompanho são majoritariamente norteamericanas ou inglesas. Conhecer obras de outros países tem sido um dos meus objetivos, tanto na literatura quanto no cinema, e esta em específico foi uma experiência muito valiosa. Cada canto do mundo tem a sua própria forma de ver a vida, e isso fica muito evidente em suas obras.

A trilha sonora também não deixa a desejar, contando com músicas como a adaptação acústica de Love will tear us apart, também com o clássico Hide and seek, e uma das minhas preferidas, Everything I Am Is Yours. A playlist completa pode ser conferida no Spotify neste link. Acompanhar Marianne e Connell por uma jornada de descobertas, dores, conquistas e frustrações, tudo isso com um toque de normalidade, foi uma das melhores coisas que fiz neste ano, e é por isso que indico primeiro a leitura do livro e depois a apreciação da série, esta que está disponível no Brasil pela plataforma Starzplay.