Crítica | Passageiro Acidental (Stowaway) [2020]

Nota do filme:

Em uma missão espacial a caminho de Marte, a diminuta tripulação composta pela capitã Barnett (Toni Colette), o cientista David (Daniel Dae Kim) e a médica Zoe (Anna Kendrick) é surpreendida pela presença do “intruso” Michael (Shamier Anderson), um engenheiro que sofreu um acidente enquanto trabalhava na manutenção da nave e ficou desacordado enquanto esta decolava. Além da situação inusitada de ter alguém que não se preparou para a tarefa (que durará 2 anos), o grupo ainda precisa lidar com as consequências de uma quarta pessoa em um lugar que foi adaptado para abrigar apenas três, incluindo entre tais consequências a eventual falta de recursos.

Embora seja possível argumentar que todo filme é beneficiado quando visto em um cinema, é inegável que certas produções perdem mais do que outras quando são vistas em televisores, monitores de computador e – batendo três vezes na madeira – celulares. Gravidade (2013), por exemplo, é um típico caso de filme que fica melhor quanto maior for a dimensão da tela em que é visto, dada a imensidão do espaço. Com a pandemia e o fechamento (temporário ou permanentemente) de várias salas, muitos realizadores não tiveram outra opção a não ser lançar seus longas diretamente no streaming, e o público teve que se contentar (e se adaptar) com essa nova realidade. Se para algumas obras isso não fez uma diferença radical, para outras a desvantagem foi clara. Passageiro Acidental é um desses casos, já que, assim como o belo trabalho de Cuarón, perde muito de seu impacto quando assistido longe dos cinemas.

Não que o filme possua muitas cenas “externas”. Muito pelo contrário. A maior parte da história se passa dentro da nave e a narrativa está mais interessada em observar as reações daquelas pessoas aos dilemas morais que se sucedem do que em criar imagens impactantes. No entanto, é justamente no momento em que dois personagens precisam sair para realizar um procedimento que o filme cria uma sequência de tirar o fôlego, estabelecendo a infinitude espacial ao redor como uma ameaça constante e nos deixando apreensivos em relação ao destino da dupla, que nunca fica plenamente segura, podendo sofrer algo a qualquer momento. Por isso mesmo, chega a ser frustrante o que ocorre em seguida, que diminui a força do que deveria ser o clímax da produção.

Criar instantes de tensão acaba sendo o que Passageiro Acidental faz de melhor (embora a trilha sonora empregada para compor esta tensão seja clichê), de modo que sempre ficamos com a pulga atrás da orelha e desconfiamos de determinadas intenções. Assim, a própria natureza da trama torna-se uma indagação, tendo em vista que as dúvidas sobre qual caminho será tomado (o terror?, o sobrenatural?) são comuns, especialmente em sua primeira metade. Isso pode fazer com que muitos se decepcionem com seu desfecho.

Logo na primeira cena, a imagem de Zoe é girada noventa graus para a esquerda e a câmera treme incessantemente, retratando a decolagem do foguete, mas também simbolizando a chacoalhada que a vida da médica sofre a partir dali, situação que é vivida com esmero por Kendrick. O restante do elenco também é hábil ao estabelecer comportamentos condizentes com as personalidades de cada um: com o cientista David pensando da maneira mais pragmática possível; Barnett, a figura de liderança, sempre buscando tomar as rédeas, e Michael apresentando uma natural desorientação. E todos são eficientes em manter suas humanidades perante a difícil escolha com a qual precisam lidar.

Outras opções interessantes adotadas são a utilização da direção de arte, que emprega fotos e objetos pessoais para falar sobre a vida dos personagens e a escolha – o melhor acerto do roteiro – em não revelar os diálogos que Barnett ouve do centro de comando, pois a) eles não são realmente necessários, já que somos capazes de deduzir e b) isso acrescenta mais peso dramático às reações dela e, consequentemente, às nossas.

Mais drama moral do que ficção científica, Passageiro Acidental cria boas atmosferas de suspense e belos quadros, ainda que a sensação após seu encerramento seja primordialmente melancólica.