Crítica | Os Rejeitados (The Holdovers) [2023]

Nota do Filme:

O ano de 1970 está chegando ao fim e os estudantes do colégio Barton se preparam para passar o recesso de fim de ano com suas respectivas famílias. No entanto, há sempre um grupo que, por circunstâncias particulares, permanece nas dependências acadêmicas, sendo necessária a presença de um profissional para supervisionar os remanescentes (holdovers). O encarregado da vez é Paul Hunham (Paul Giamatti), professor de Antiguidade Clássica pouco querido pela comunidade por seu temperamento e métodos rigorosos. Quando um dos guris consegue deixar o local para esquiar, levando consigo quase todos os colegas, o único da turma a permanecer no prédio é Angus Tully (Dominic Sessa). Assim, ambos precisarão encontrar formas de passar as semanas seguintes, acompanhados da chefe da cantina Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph), cujo filho, ex-aluno de Barton, recentemente faleceu na Guerra do Vietnã. É essa a premissa de The Holdovers, novo longa de Alexander Payne, uma obra que ecoa Sociedade dos Poetas Mortos em doses mais cínicas, mas nem por isso menos emocionantes.

Repetindo a parceria com Payne em Sideways (que lhe rendeu a melhor atuação de sua carreira), Giamatti compõe Hunham com talento suficiente para evitar que o docente vire a caricatura do “rabugento engraçado”, estabelecendo-o como uma figura tridimensional. Exemplos disso são o rompante de raiva na mesa jantar, ao ficar indignado perante o desprezo que um dos jovens demonstra em relação a uma mãe enlutada, ou a observação que faz a Angus (“Quantos garotos você conhece que tiveram as mãos arrancadas? Os rapazes Barton não vão para o Vietnã.”), lembrando-o de que, por mais difícil que sua vida esteja, ela ainda é infinitamente mais privilegiada que a da maioria dos que compartilham sua faixa etária. O ator também é generoso ao trazer para si a maioria das ações que podem gerar antipatia, blindando assim os colegas de elenco, sobretudo o mais novo. É quase como se dissesse “Ei, fiquem bravos comigo, deixem o garoto em paz“, o que não deixa de estabelecer uma rima com determinada atitude do próprio personagem.

Já Sessa, em seu papel de estreia, parece ter um futuro promissor. Favorecido pela altura avantajada para um adolescente, que ressalta seu caráter precoce e desengonçado, o novato encarna com maestria o turbilhão de sentimentos pelos quais alguém de sua idade e condição vive. E seus olhares e expressões corporais, assim como a agressividade e o tom com que profere ofensas, são pontos reveladores não apenas de sua personalidade forte, mas também das cicatrizes que já adquiriu, desproporcionais para alguém ainda tão jovem.

E então chegamos à relação entre ambos, o que torna The Holdovers um filme tão especial. Hunham vê muito de si (intelectual e emocionalmente) em Angus, e isso o preocupa, porque não deseja que o rapaz cometa os mesmos erros que o levaram a se tornar um adulto tão amargo. Já o estudante eventualmente acaba por enxergar uma figura paterna no professor, mas, por motivos que ficam claros no terceiro ato, tem enormes dificuldades em lidar com isso de maneira saudável.

Os dois se identificam também pelo modo como utilizam erudição e inteligência enquanto armas: sim, é perfeitamente cabível considerá-los arrogantes e presunçosos (afinal são mesmo), mas logo as razões disso ficam evidentes. O acadêmico, sob o risco de soar enfadonho, utiliza seu conhecimento para preencher a ausência de traquejos sociais; em vez de ser um simples ato de soberba, esse é o jeito como ele consegue, mais ou menos, socializar. Já o aluno faz disso um mecanismo de autoafirmação, algo tão típico em um adolescente; não possuindo grandes atributos físicos, a melhor opção que encontra quando quer machucar alguém é lançar mão de ataques de ordem cognitiva como forma de compensação.

O longa é enriquecido ainda mais com a presença de Randolph, que já larga na frente na corrida pela nossa simpatia não apenas porque Mary é mais doce que Hunham e Angus juntos, mas também porque sua dor é consideravelmente mais visível. Além disso, diferentemente de seus colegas, ela é madura o suficiente para não descontar sua frustração nos outros, o que culmina na tocante cena em que testemunhamos sua passagem da negação para a raiva (e que isso aconteça em uma cozinha e durante uma festa é uma ótima escolha do roteiro de David Hemingson). Nesse instante podemos perceber que ela está, acima de tudo, exausta, mal conseguindo reunir forças para falar, tamanho o seu nível de cansaço. Já as reações de Giamatti e Sessa demonstram a preocupação que passaram a nutrir por aquela mulher ao mesmo tempo em que não sabem exatamente como confortá-la (e é curioso notar como o inverso se dá mais adiante, na passagem em que Mary estende a mão para Angus para acalmá-lo durante um momento de tensão). Merece destaque também a maneira como ela não perde a paciência ao ouvir algo condescendente de Hunham sobre o que é uma monografia; não apenas é uma aula de autocontrole como uma triste sugestão de que já está acostumada a esse tratamento. É uma atuação brilhante.

Chega uma hora em que é inevitável olhar para The Holdovers e não pensar no clássico Conto de Natal de Charles Dickens, mas, ao contrário de boa parte das adaptações do livro, que pouco acrescentam ao material de origem, o filme de Payne funciona de modo inventivo e anda com as próprias pernas. É uma narrativa menos fabular, sem dúvidas, mas tão fornecedora de aprendizados quanto.