Crítica | Oppenheimer (2023)

Nota do filme:

Conta a lenda grega que Prometeu, um dos titãs encarregados de criar seres mortais, se compadeceu dos humanos ao perceber que estes não possuíam habilidades como os outros animais. Ele, então, rouba o fogo dos deuses e o concede aos humanos, dando-lhes vantagens para que pudessem se equiparar em agilidade e força aos demais seres vivos.

Quando Zeus, o deus dos deuses, descobre o que Prometeu fez, o pune com um dos piores castigos da mitologia grega. Ele o acorrenta ao Monte Cáucaso para que uma grande águia venha todos os dias comer seu fígado, que se regenera diariamente. A impetuosidade e falta de reflexão de Prometeu acabou não apenas por condená-lo para sempre, como também toda a humanidade.

Quando o cientista americano Robert Oppenheimer aceitou a tarefa de dar continuidade aos estudos alemães de fissão nuclear, ele talvez não soubesse, mas viria a ser um Prometeu moderno. Sua participação no Projeto Manhattan pode ter começado com boas intenções, mas acabou por criar a maior arma de destruição da história, um poder que talvez nenhum homem devesse possuir.

Criador e criatura são o cerne do novo (e talvez mais ambicioso) projeto de Christopher Nolan, o longa Oppenheimer, que chega aos cinemas nesta quinta-feira (20). Baseando-se na biografia escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin, Nolan utiliza todos os recursos e tecnologia à disposição para contar essa história na maior escala possível, como a própria bomba.

Assim, Oppenheimer é, inegavelmente, um filme grandioso. Não apenas por falar da vida de um homem cuja invenção mudou os rumos da humanidade, mas porque o diretor faz questão de tornar seu filme uma experiência. A exibição na sala IMAX, como idealizada por Nolan, realça cada aspecto técnico, desde a incrível edição de som até os vistosos efeitos visuais, ampliando sua escala de impacto.

Cillian Murphy em cena do filme Oppenheimer (2023).

Durante três horas e nove segundos, o diretor destrincha os caminhos que levaram Oppenheimer à criação da bomba que destruiu Hiroshima e Nagasaki em 1945. Como judeu, ele tinha uma aversão quase pessoal aos nazistas, queria ultrapassá-los na corrida pelo conhecimento sobre a fissão dos átomos. Porém, uma vez criada, a tecnologia passava a pertencer ao mundo e ele não mais teve controle sobre o que seria feito com ela.

A nova empreitada de Nolan

Oppenheimer, certamente, vai dividir opiniões. Os fãs de Nolan podem esperar a volta do realizador entusiasmado que produziu obras tão memoráveis quanto Interestelar, A Origem e Cavaleiro das Trevas. Por outro lado, Oppenheimer é um filme político, então acaba oferecendo uma quantidade razoavelmente menor de ação. Seu estilo característico de contar histórias permanece, mas pode acabar pesando o longa em certos momentos.

Isso porque Oppenheimer é, antes de tudo, um drama biográfico, cheio de fatos e momentos importantes que precisam estar na tela. Junte uma grande quantidade de informações em ritmo frenético à diferentes linhas temporais e uma narrativa não-linear e você terá um filme desnecessariamente robusto. E longo.

Para aqueles familiarizados com os feitos de Robert, não deve ser problema, mas os leigos podem ter certa dificuldade em acompanhar o raciocínio. Como em seus filmes anteriores, Nolan procura explicar de forma clara os conceitos e desdobramentos que permeiam a história, mas a montagem apressada acaba atrapalhando. Acontecimentos e personagens importantes aparecem brevemente e se perdem no decorrer da narrativa com a mesma rapidez com que entraram.

Cillian Murphy em cena do filme Oppenheimer (2023).

As três horas de duração parecem insuficientes para abordar de forma satisfatória tudo o que o filme gostaria, mesmo porque ele não se interessa em fazer concessões. Porém, enquanto tenta incluir o máximo de informações sobre a ascensão e queda de Oppenheimer, o longa não procura refletir, de fato, sobre quem é seu protagonista. E é aí que reside o maior problema.

Muita afetação e pouca alma

Robert Oppenheimer foi uma figura controversa: ao mesmo tempo em foi responsável por enormes feitos acadêmicos, criou a maior arma de destruição da história. Ele se arrependeu amargamente de sua descoberta, tendo passado por períodos de depressão e ansiedade, entre outros problemas psicológicos. Teria sido muito proveitoso se o filme acrescentasse essa dose de humanização ao personagem, entenderíamos melhor seus sentimentos diante de tudo o que ajudou a criar.

Mas Nolan prefere dar mais atenção aos fatos do que ao psicológico de seu protagonista. O diretor tinha tudo para fazer um estudo profundo sobre seus traumas, mas são poucos os momentos em que Robert aparece refletindo sobre os rumos do Projeto. Diante de um personagem que poderia ser tão rico, foi uma decisão infeliz a de deixar o assunto na superfície para esmiuçar apenas seus feitos.

Isso faz de Oppenheimer um longa frio em toda a sua grandiloquência. Ao invés de investigar quem foi o homem por trás do título de “pai da bomba atômica”, o filme quer nos mostrar como ela foi criada. Fica faltando algo que nos ancore ao protagonista, um sentimento de identificação que nos coloque realmente dentro da história. Coisa que interrogatórios e sessões de tribunal não conseguem fazer.

Robert Downey Jr. em cena do filme Oppenheimer (2023).

Robert Downey Jr. é a grata surpresa

Deixando de lado questões sobre o roteiro, também escrito por Nolan, Oppenheimer tem um elenco repleto de estrelas empenhadas em elevar a qualidade de um material já muito bom. Mas, destas participações, muitas são mínimas. Não é o caso de Matt Damon, por exemplo, que está bem como o Coronel Leslie Groves, mas de atores como Kenneth Branagh, Gary Oldman, Casey Affleck e Rami Malek, que têm pouco a fazer em cena. Eles não atrapalham, mas também não se destacam.

É bom enfatizar que as participações femininas também não recebem o destaque merecido. Tanto Emily Blunt quanto Florence Pugh interpretam personagens complexas que precisavam de mais tempo para se desenvolver, mas não é o que acontece. Emily ainda briga por atenção e, quando está em tela, consegue se destacar, mas, no fim das contas, não tem tanto a fazer.

Por outro lado, Cillian Murphy faz um Oppenheimer que vai da impulsiva euforia juvenil até um homem maduro atormentado por seus atos e escolhas. É uma interpretação afiada em que ele quase desaparece no papel, lembrando muito o próprio cientista, pelo olhar, muitas vezes, vazio e perplexo. Ainda é cedo para falar em premiações, mas ele é um forte candidato.

Porém, a grande aposta é na figura de Lewis Strauss, presidente da Comissão de Energia Atômica e antagonista de Robert nas controversas audiências a respeito de sua autorização de segurança. No filme, ele é interpretado por um Robert Downey Jr. que há muito tempo não víamos no cinema. Suas cenas são marcadas por uma despropositada fotografia em preto e branco, mas sua interpretação é o grande destaque do longa.

Ainda que se recuse a fazer uma investigação íntima, Nolan não fica indiferente ao seu protagonista. Entre endeusá-lo e questioná-lo, o filme deixa que o espectador tire suas próprias conclusões. A forma como ele conduz essa análise é o que pode, de fato, dividir opiniões e marcar Oppenheimer como um filme adorado ou não em sua filmografia.

Como já era esperado, são muitos os méritos técnicos, sobretudo em relação à fotografia, efeitos e design de som. O visual do longa não deixa dúvidas de que estamos vendo um filme de Christopher Nolan, mas nem um realizador experiente como ele escapou da armadilha das cinebiografias desesperadas em mostrar tudo e refletir pouco.