Crítica | Mulan (2020)

Nota do filme:

“Há muitas lendas sobre a grande guerreira Mulan. Mas, ancestrais, esta é a minha.” A frase que abre o live-action da animação da Disney lançada em 1998 é muito reveladora das intenções do projeto, uma vez que diferentes adaptações já foram feitas acerca da lenda chinesa que remonta ao século VII, cada qual com sua proposta específica. Assim, a versão mais recente de Mulan não hesita em se distanciar, seja em tom ou enredo, do desenho animado, embora compartilhe com este diversas semelhanças, incluindo a estrutura narrativa que determina o arco da personagem. 

Desta forma, os já familiarizados com a trama não serão pegos de surpresa: reprimida pelos costumes locais e pressionada a renegar sua personalidade a fim de ser submissa e se tornar uma esposa dócil e, assim, não trazer desonra para sua família, a jovem personagem-título (Yfei Liu) vê sua vida mudar drasticamente quando, na iminência de uma invasão estrangeira, o imperador chinês (Jet Li) determina que cada família ceda um homem para integrar o exército e conter a horda liderada por Böri Khan (Jason Scott Lee) e Xianniang (Li Gong). Não possuindo um irmão que possa servir de tributo, a garota decide se passar por soldado e ir à guerra, evitando assim que seu já combalido pai (Tzi Ma) cumpra o serviço.

A partir daí, o projeto passa a exibir suas características próprias em relação à obra de 98 – como a introdução da feiticeira -, ao mesmo tempo em que oferece alguns acenos à animação, como a presença de uma ave que acompanha o antagonista e um personagem chamado Grilo. Mas o que o difere mais em relação àquele longa é seu tom, pois embora receba classificação etária livre, Mulan se propõe mais sério, urgente, e violento. E se um dos elementos que tornava o desenho eficiente era o ótimo equilíbrio entre uma história que entretinha as crianças pelo seu humor e agradava aos adultos por sua maturidade, tal equilíbrio não se repete aqui, tendo em vista o pouco impacto e a timidez dos alívios cômicos. O que, de certo modo, justifica a ausência de Mushu, simpático dragão dublado por Eddie Murphy na versão anterior e que ficaria deslocado dessa vez.

Alguns dos bons momentos do filme ficam por conta do design de produção de Grant Major (responsável pela trilogia O Senhor dos Anéis), em especial a concepção da aldeia em que Mulan vive. Semelhante a um conjunto habitacional em formato circular, soa aconchegante e facilmente identificável como um lar para as pessoas que ali habitam. A trilha sonora, discreta porém tipicamente épica, também ajuda em momentos-chave da trama. Por fim, a fotografia é responsável por belíssimas imagens, como a que mostra o exército chegando a uma guarnição destruída (impossível não pensar em Kagemusha, a Sombra de um Samurai, mas isso será discutido adiante). Aliás, é curioso notar como esse momento também causava impacto em 98.

Já os efeitos digitais são mais irregulares, o que causa certo desapontamento considerando o investimento envolvido em um projeto desse tamanho (a cena da avalanche, por exemplo, parece pouco crível em função de sua artificialidade, e quase não conseguimos ver a fênix em detalhes, o que é uma pena). Quanto ao roteiro, escrito a oito mãos, possui certos diálogos que poderiam ser menos expositivos, parecendo querer poupar tempo em uma narrativa que chega perto de duas horas. E à medida que determinada personagem ganha destaque, a tentação que Mulan sofre no deserto se torna previsível.

Mas quando parte para o “analógico”, o filme alcança melhores resultados. As cenas de luta são bem coreografadas, e o espectador nunca se perde na mise-en-cène das batalhas. Além disso, Mulan estabelece uma curiosa mescla entre o Cinema chinês que popularizou o kung fu e os épicos de samurais, como o Kagemusha de Akira Kurosawa mencionado acima. A utilização das cores e figurinos, algo magistralmente dominado por Kurosawa, é retomado aqui, embora em menor escala. Apenas decepciona o figurino pouco inspirado dos invasores que, sem maiores particularidades, se assemelham aos persas de 300.

A diretora Niki Karo merece destaque principalmente na construção de algumas cenas, como a que contrasta a família de Mulan dormindo abraçada enquanto ela dorme sozinha, e em rimas visuais, como as que mostram a protagonista usando a palma da mão para sentir tanto um tremor na terra quanto os batimentos cardíacos de Honghui (Yoson An), ou o ato de segurar uma flecha, que abre e encerra o arco de Khan.

E, claro, é necessário comentar a performance central de Yfei Liu. Algumas das críticas negativas a seu respeito apontam falta de carisma e inexpressividade como principais problemas. No entanto, muito de sua composição se justifica pelo já referido tom do filme. Liu constrói sua personagem carregada de uma melancolia compatível com a situação que vive. Seu olhar expressa uma constante tristeza de quem sabe que não há o que comemorar ou romantizar. Também é digno de nota o trabalho de Li Gong, que, auxiliada por um roteiro que dá complexidade a Xianniang, se converte em um dos destaques do longa.

Com propostas diferentes das utilizadas em Aladdin e Rei Leão, Mulan é, enfim, muito mais um filme de ação cujo vínculo com uma animação dos estúdios Disney parece ser mera casualidade, possuindo aspectos positivos e negativos em função dessa característica.