Crítica | A Casa do Medo – Incidente em Ghostland (Ghostland) [2018]

Pascal Laugier, diretor do brutal Martyrs, filme francês de 2008, retorna das cinzas e nos traz mais um thriller assombroso e minuciosamente perturbador

Em um gênero já tão desgastado e repetitivo, são poucas as obras que se destacam nesse amontoado de filmes de sustos baratos e roteiros preguiçosos. Em 2008 Pascal Laugier chocou o mundo com o original e polêmico, Martyrs, que dividiu opiniões e se tornou instantaneamente um Cult do gênero. Além de figurar como uma das obras-primas do New French Extremity e hoje se destacar como uma das mais populares do seguimento.

Brincando com a psique humana e com os monstros internos que escondemos sob a luz do dia, Martyrs extravasa a brutalidade e o horror em um thriller psicológico, mentalmente catastrófico e perturbador, nos levando para uma viagem sem volta há um universo do terror que, ainda não tínhamos visitado até àquele momento. Depois de sua obra-prima, Pascal Laugier se aventurou por Hollywood para dirigir o confuso The Tall Man (2012), que podemos apontar como um fracasso instantâneo, e desde lá não tínhamos ouvido mais falar do escritor/diretor, até o anúncio de Incident in a Ghostland.

No longa, Pauline (Mylène Farmer) e suas duas filhas, Beth e Vera, na altura interpretadas por (Emilia Jones ) e (Taylor Hickson), se mudam para a casa que sua mãe herdou após a morte de uma tia e, na primeira noite no novo lar, a família é atacada por violentos invasores, tendo que lutar desesperadamente por suas vidas. Dezesseis anos depois do terrível ocorrido, Beth, uma famosa e bem sucedida escritora de livros do gênero horror, mãe e esposa amorosa, agora interpretada por (Crystal Reed), resolve voltar para a casa da família, depois de uma estranha e perturbadora ligação de sua irmã Vera, interpretada nessa fase por (Anastasia Phillips). No entanto, ao se reunirem, coisas assustadoras acontecem e fantasmas enterrados no passado, que parecem nunca ter libertado a mente de Vera, retornam para assombrar a realidade de Beth.

Acreditem, escrevi minuciosamente essa sinopse, mudando a original, para não entregar nenhum ponto das surpresas que o filme proporciona, pois cada segredo que as cenas iniciais escondem, são cruciais para uma experiência desoladora nessa viagem adentro de um pesadelo monstruoso que, Laugier propõe neste filme. Logo, já aviso que, partindo deste ponto, mesmo que mínimos, existirão spoilers sobre a obra. Amenizei de todas as formas para não entregar pontos importantes do longa, mas será impossível não entregar os momentos das reviravoltas, ao falar da estrutura do filme.

Com uma obra visualmente fantasmagórica, Laugier nos ganha já na construção visual de Incident in a Ghostland, seja a caracterização dos personagens, até mesmo o menor detalhe de cena. A fotografia do filme é de boa qualidade, muito bem feita, e a trilha sonora é marcante e ao mesmo tempo pontual, sendo sutil quando tem que ser, e estrondosa quando necessária. Ao meu entender, o filme é dividido em quatro atos bem distintos. O primeiro inicia quando as personalidades das personagens são apresentadas, assim como a relação e ligação que elas dividem.

Propositalmente alguns elementos clichês de filmes de terror, de contos de horror, nos é passado sutilmente no decorrer do primeiro ato, como uma mensagem de fonte colorida em letras garrafais, destacadas em um enorme outdoor. Não chega a ser ofensivo, não é essa a proposta, mas nos dá a ideia de que existe um sentido para um desfecho, e ao mesmo tempo serve como homenagens e referências a grandes obrar do gênero, e isso é apenas o início da preparação que o diretor está nos propondo, para mais tarde nos entregar algo maior. Ao menos essa é a promessa que vejo surgir no filme, mas a entrega é um pouco diferente.

Assim o primeiro ato inicia de forma com que, possamos conhecer as personagens e nos afeiçoar a elas, para findar em uma batalha eletrizante pela sobrevivência das mesmas poucos minutos depois da apresentação. Único ponto negativo é que não nos apegamos às personagens tempo suficiente para nos importarmos com elas de verdade, porém a atrocidade que o diretor trás sugestivamente para a cena, cria um impacto no expectador, choca, justamente pelo filme ter um tom mais leve e infantil até o momento. Vale a ressalva que o filme abusa desse tom mais infantil e fantasioso propositalmente.

O desfecho do primeiro ato é uma surpresa total, mesmo conhecendo a sinopse do filme. A razão disso está na execução da cena de ação na luta contra os invasores, mesmo não sendo de uma violência explicita e marcante como vemos em Martyrs, a sugestão que, Laugier trás para a cena é completamente aterradora. Além do fato que a montagem dessa cena é genial. Assim acabamos sem fôlego o primeiro ato, e quando iniciamos o segundo, um novo universo nos é apresentado. Uma trama cheia de mistérios parece surgir no horizonte e o filme ganha uma pegada clássica aventuresca, dentro de um conto de horror. Como nos próprios livros que a personagem de (Crystal Reed) escreve. O que acaba aparentando, é que Beth agora está interpretando uma de suas próprias personagens, a caminho de um futuro incerto e violento dentro de uma de suas histórias.

No segundo ato, mais alguns clichês de filmes de terror de sustos baratos nos são apresentados, porém agora o diretor extravasa em efeitos pobres e situações maçantes e óbvias, como as existentes em um conto clássico de terror, o que se mostra mais uma vez, proposital. E quando o filme parece caminhar na direção da mesmice já consagrada no cinema de horror voltado para o sobrenatural, o filme ganha uma camada de Pascal Laugier. Com toda certeza, quando acontecer, e você presenciar esse momento durante o longa, irá ligar diretamente esse fato com o já visto e revisto em Martyrs, mas a comparação destas duas obras acaba na síntese de que nada é o que parece ser, quando estamos sendo guiados pela mente insana de, Laugier.

Ao final do segundo ato juntamos todas as pontas soltas e compreendemos os motivos dos efeitos especiais banais e das tentativas de sustos baratos, porém os mais desatentos poderão deixar escapar esses detalhes. O segundo ato acaba com um soco no estômago e o terceiro começa com náuseas. O universo apresentado agora é, de desolação total, de desesperança. Os cenários são macabros e a maquiagem pesada. Nessa altura estaremos envolvidos completamente pela trama, e aos poucos, todos os sustos e detalhes que nos pareceram sendo gratuitos, advindos de filmes clássicos de horror, de histórias manjadas e desgastadas, na verdade montam uma nova forma de apavorar o expectador.


Como uma simples boneca barulhenta em uma caixa, para um susto gratuito, que agora se torna uma linha fina entre vida e morte. Todas as pontas soltas são amarradas meticulosamente, sem se perder na asneira de querer explicar o que não é necessário. O terceiro ato nos da o horror, o choque, a aventura, a esperança, e nos entrega para um quarto ato de pura desolação, onde mais uma vez, Pascal Laugier vai fundo na psique humana, mostrando até onde uma mente pode ir para não encarar a realidade.

O filme tem seus pontos fortes e tem suas fraquezas, muitos contestam os vilões do filme, por serem demasiados estúpidos, fantasiosos e caricatos, mas ignoram que a proposta era exatamente essa. Laugier, no trás muitos universos, de vários filmes e vários contos de horror, faz uma homenagem ao gênero e trás muitos dos elementos vistos em Martyrs, colocando um peso fantasioso na obra, e deixando o longa ainda mais assombroso por conta dos elementos infantis.

As atuações em Ghostland do nicho principal são impecáveis devido ao talento da dupla Taylor Hickson e Emilia Jones, temos sequências de tirar o fôlego. Mais uma vez, Laugier destroça com suas personagens femininas, assim como já feito em Martyrs, só que dessa vez, nos leva para uma zona de desconforto total com as situações e sugestões de violência sexual em cena, perambulando por uma fábula infantil como João e Maria, trazendo esse conto infantil tão conhecido, para a realidade machista da sociedade, reescrevendo a história de uma forma brutal, perturbadora, incômoda e sutilmente dilacerante.

O roteiro deste longa francês funciona muito bem, mas em alguns momentos se perde, pois justamente essa brincadeira com realidade e fantasia, torna algumas cenas desgastantes e tira o impacto que algo mais realista poderia causar, entretanto é justamente essa proximidade com a fantasia, com a leveza de vilões mais bobões, trazendo um elemento vivo em histórias infantis, que torna densa e pesada algumas outras partes da história e cenas do filme, o que caracteriza que, Laugier tenta realmente nos trazer algo novo e diabólico em Incident in a Ghostland.

Em um todo o filme funciona muito bem, e assim como Martyrs, pode demorar muito para cair no gosto popular, mas o que vale salientar, é que em uma época de filmes apelativos e sem sentido, Incident in a Ghostland nos é uma grata surpresa, um filme necessário para todo e qualquer cinéfilo, e ao mesmo tempo, um soco no estômago, uma aterradora história de horror, dentro de um pesadelo no mínimo poeticamente realista. Um passeio incômodo por uma cultura mais presente e impregnada nas entranhas da sociedade do que o ar que respiramos.

Incident in a Ghostland (França/Canadá)

Data de lançamento: 14 de março de 2018 (França)

Direção: Pascal Laugier

Música composta por: Todd Bryanton

Roteiro: Pascal Laugier