Crítica | Ela (Her) [2013]

A essência da fragilidade humana

O que é real? Simplesmente é aquilo que podemos sentir? Em um mundo de emoções rasas e relacionamentos tão frios quanto o inverno polar, Spike Jonze nos apresenta um universo futurista, com uma trama tão plausível e excentricamente realista quanto, preocupante. A realidade do filme choca e comove, não apenas por expor as fragilidades da condição humana perante a solidão, mas pela proximidade com a realidade atual e sua evolução.

O filme conta a história de Theodore Twombly (Joaquin Phoenix), um homem solitário, que se apaixona por seu sistema operacional. De fato o princípio da história é esse, mas resumir a história dessa forma não é apenas clichê, como imperdoável. A situação é muito mais complexa. Theodore Twombly não se apaixona apenas por seu sistema operacional (uma inteligência artificial capaz de desenvolver personalidade e consciência), mas seu sistema operacional, Samantha (voz de Scarlett Johansson), desenvolvendo sentimentos e emoções humanas, também se apaixona por Theodore.

Uma das coisas que sempre escapa aos olhos da grande maioria dos críticos, é que Samantha tem livre arbítrio apesar de ter que atender as necessidades do usuário, tendo funções específicas que o usuário escolhe, tais como materna, paterna, amante, cuidador, Samantha não foi programada diretamente para se apaixonar. Ela aprende tudo sobre a humanidade buscando conhecimento em livros, filmes, obras e tudo mais que tem disponível na internet.

Segundo a psicologia sócio-histórica de Vygotsky, é a cultura do meio onde se vive que constitui o homem, e a transformação passa diretamente pela condição sociocultural do indivíduo. Assim não seria a consciência que determinaria como o homem viveria, mas sim a vida que se leva que determinaria a consciência deste indivíduo. Sendo assim, dentro dessa teoria, não existe natureza humana, o homem não nasce humano, ele se torna humano e sua construção interna se estabelece a partir de sua interpretação do mundo externo, para assim formar sua individualidade. São as relações sociais e suas atividades que tornam o homem o que ele é, e o transformam.

O que isso de fato quer dizer, é que o homem aprende a se tornar humano, ele se humaniza a partir do contato com a cultura, com outros humanos, com a história, com suas vivências. Samantha não é humana, mas desenvolveu sua consciência, assimilou sentimentos e emoções humanas e conseguiu interpretá-las e representá-las. Algo que todos nós humanos fazemos, pois interpretamos algo e depois representamos. O que são as emoções? que meros impulsos elétricos, os quais interpretamos e depois representamos à nossa interpretação.

Jonze é tão pontual em sua escrita, que consegue colocar um milhão de questionamentos em um simples gesto humano representado por uma consciência artificial. Onde levantamos o questionamento se o amor vivido por  Theodore e  Samantha é real? E é justamente de onde nasce outra questão, o que é real? Jonze abusa de um roteiro original e ousado, em uma trama que se tornou um clássico instantâneo do cinema.

Podemos dizer que Her é um filme estético, de camadas, paleta de cores que flertam com nossas emoções, de uma fotografia impecável e exuberante que nos conduz por um universo de detalhes e enquadramentos, que revelam muito mais de uma cena, que mil palavras proferidas pelos personagens poderiam nos revelar. Mas por tamanha importância da obra, sua beleza vai além da estética  em uma narrativa melancólica.

Theodore Twombly vive o luto recente de uma separação. Ele trabalha na “Beautiful Hand Written Letters”, onde escreve cartas manuscritas para clientes que não sabem o que escrever para seus entes queridos. Suas cartas são escritas com tanto amor, sentimento e profundidade, que seu trabalho se destaca. Ele é um homem infeliz, sem vida, melancólico, triste com a perda do que julgava ser o grande amor de sua vida e ao se apaixonar por Samantha, Theodore volta a sentir sentimentos e emoções tão reais quanto as que sentiu em seu último relacionamento.

O filme não é uma história de amor, fala muito mais sobre a condição humana e solidão do que qualquer outra coisa. As atuações da obra são impecáveis. Joaquin Phoenix conduz o filme com uma naturalidade, que o expectador consegue se identificar com seu personagem. O filme altera momentos de humor, frustração, com tristeza e reflexão, sob uma trilha sonora que precisa ser enaltecida.

Sem revelar mais de uma história que precisa ser vista, vivida, compreendida e interpretada, podemos dizer que Her é um dos grandes filmes desse novo século, e seu contexto é muito mais profundo que uma simples crítica a nossa conexão cada vez mais distante das emoções reais, da vida real, do contato humano. Um filme genial que será atual em qualquer época, em qualquer lugar, em qualquer futuro distópico que puder existir. 

Afinal, a saudade é um fantasma preso entre dois mundos. Passado e presente que se entrelaçam. Em qualquer lugar no tempo e espaço, irá existir a falta e alguém para senti-la.

P.S: (Primeira crítica que escrevi para o cinematologia. Encontrei por acaso, perdido em um amontoado de sentimentos escritos, ao tentar colocar um adeus no papel. É impressionante os sentimentos que os filmes nos despertam. Esse filme vai ser sempre um dos meus preferidos, logo tinha que escrever sobre ele, sobre o que ele me causa. O sentimento de perda que me aflora. Hoje com nome, sobrenome e até endereço. Acho que é isso que os filmes fazem afinal, nos contam histórias sobre nós mesmos, falando sobre mundos e universos distantes, que são tão familiares e íntimos, quanto a nossa solidão).