Nota do Filme:
Em março de 2020, o ex-produtor de cinema Harvey Weinstein foi sentenciado a cumprir 23 anos de prisão por agressão sexual e estupro de atrizes e funcionárias com quem trabalhou. Depois de lançamentos de sucesso como Pulp Fiction (1994) e Shakespeare Apaixonado (1999), sua produtora, a Miramax Films, foi responsável por torná-lo um dos maiores nomes da indústria. Mas o império começou a ruir em outubro de 2017, quando o jornal The New York Times publicou uma grande investigação detalhando diversas alegações de assédio e agressão sexual contra o produtor ao longo de três décadas. E ela foi só o pontapé inicial. Depois disso, muitos outros casos vieram à público, o movimento #MeToo ganhou força e políticas contra o assédio em empresas vêm ganhando cada vez mais destaque. E é sobre os bastidores da reportagem que desencadeou tantas discussões que fala Ela Disse, que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (08/12).
Baseado no livro homônimo escrito pelas jornalistas Jodi Kolmer e Meghan Twohey, as próprias autoras da investigação, o filme dá conta mostrar como se deu a procura pelas vítimas e o desafio que as repórteres enfrentaram não apenas para burlar o esquema de silenciamento de Weinstein, mas também, como era de se esperar, o medo das vítimas em levar tudo à público. Ela Disse explora com muita sensibilidade e cuidado os relatos de cada vítima, dando a elas sua devida importância e enfatizando o tratamento que Jodi e Meghan dão às testemunhas. Este é o ponto-chave da obra: ao mostrar o respeito com que elas foram tratadas, o filme reafirma a excelência das repórteres e a importância dessa reportagem para o movimento.
Mérito da diretora alemã Maria Schrader, que consegue transpor para a tela com ritmo e interesse o passo a passo da investigação, prendendo a atenção do público. Esse caminho de conquistas e frustrações (mais frustrações que conquistas) é muito bem desenvolvido, e envolvente até para quem já leu e conhece a matéria publicada pelo Times. Atual e urgente, o tema abordado em Ela Disse consegue ainda mais relevância a partir dos relatos das funcionárias de Weinstein. Schrader faz de tudo para estar sempre um passo à frente daqueles que, ansiosos em desacreditar as vítimas, questionam a falta de reação e a demora que levam para denunciar os culpados. É aí que ela dá sua resposta e, com sensibilidade, mostra as sequelas emocionais e profissionais dos abusos, mais uma vez evidenciando a dimensão do caso.
Mas Ela Disse, infelizmente, não sai ileso de problemas graves de desenvolvimento. A começar pelo roteiro, que escolhe humanizar a história mostrando alguns dos desafios da vida pessoal de Jodi (interpretada por Zoe Kazan) e Meghan (interpretada por Carey Mulligan), como se quisesse enfatizar o quão complexo é o dia a dia da mulher moderna. Um paralelo entre a vida das repórteres e a das vítimas é uma abordagem relevante, afinal estamos todas no mesmo barco, mas esse aspecto do roteiro foi mal desenvolvido e se tornou altamente desinteressante. Falta força quando ele se dedica a falar sobre a depressão pós-parto de Meghan, sobre a criação das filhas de Jodi, sobre a relação de amizade entre as jornalistas, dando a impressão de que esses momentos mais atrapalham do que ajudam na condução da história.
Como se não bastassem os problemas no roteiro, Ela Disse visivelmente passou por obstáculos em sua pós-produção. Logo de cara conseguimos notar cortes abruptos e uma certa dificuldade em dar ritmo aos momentos que não incluem a investigação propriamente dita. É normal que um longa, logo depois de filmado, tenha uma duração maior do que o corte que finalmente vai para os cinemas. O trabalho da montagem é não apenas juntar tudo de forma coerente, mas cortar fora a “gordura” que atrapalha a construção de uma história redondinha. Tem muita coisa sobrando em Ela Disse, o corte final é problemático e deixa a impressão de que tudo foi feito meio às pressas, sem entender bem para que lado seguir. A falta de foco prejudica demais a história, que poderia deixar de lado os pormenores da vida pessoal das repórteres e dar mais ênfase ao dia a dia na redação jornalística, a parte mais interessante da trama.
Por mais que tente negar, o verdadeiro protagonista de Ela Disse é a investigação em si. Da forma como foi construído, fica difícil que as atuações se sobressaiam mais do que puderam. Como Jodi, Zoe Kazan consegue compor uma personagem que cai facilmente nas graças do público. Ela se destaca por ter mais tempo de tela, mas também porque consegue ser os olhos do espectador durante o filme, transmitindo toda a dor e o respeito que sentimos pelas vítimas e suas histórias. Já o caso de Carey Mulligan é mais complicado, o roteiro prejudica demais sua presença durante o filme. Mas ela acaba funcionando bem como um contraponto à personagem de Kazan, sendo a pessoa que fica na linha de frente, enfrentando e até brigando pelo bem da reportagem. Mérito do enorme da talento da atriz, que também contracena com Patricia Clarkson, outro nome escanteado pelo roteiro e que poderia ter brilhado muito mais.
Ela Disse se propôs a contar os bastidores da investigação que deu início ao fim da carreira do ex-produtor Harvey Weinstein e, apesar dos empecilhos, consegue entregar um bom trabalho. É um filme envolvente e emocionante sobre um caso que, apesar de grande, sabemos ser só uma agulha num palheiro muito maior do que podemos sequer cogitar. Infelizmente, o longa se mantém contido quando poderia ser bem maior. Se o caso chegou a atingir uma dimensão tão absurda, é porque muitas outras pessoas colaboraram para que isso acontecesse, mas o filme decide não se aprofundar. O trabalho feito por Ela Disse é inegavelmente importante, mas é difícil ignorar o quão mais categórico ele poderia ter sido, não só pelas vítimas de Harvey, mas por todas aquelas que passam, já passaram ou ainda vão passar por abusos no ambiente de trabalho.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.