Crítica | Drive [2011]

Nota do filme:

Longe do acelerador pressionado ou dos tiros incessantes de cenas de ação afogadas em efeitos, Drive sempre representou uma das literaturas animadas mais dignas para o cinema. A obra de James Sallis conseguiu não só sair do lugar-comum do gênero, mas de usar o próprio como recurso no storytelling audiovisual. O que de tão interessante há na direção de Refn passa despercebido na primeira vez em que o espectador conflitua com a enxuta história com atos imaculados. Lidando com essas temáticas dramáticas abaixo do radar, o longa se destaca em uma segunda vista como uma pincelada do inovador cinema de ação que se afirma sem o uso de gastos gratuitos com o impacto visual. Em Drive, os enquadramentos contam mais do que os diálogos. De fato, falam até mais que o próprio protagonista que nos acompanha dentro da sinuosa jornada de traição, perigo e comprometimento.

O filme utiliza uma ambientação não tão suja de Los Angeles para embarcar a trama pouco dramática, mas de extrema significância do motorista e dublê interpretado por Ryan Gosling. O personagem que não declara seu nome, idade ou grande motivação, se baseia unicamente em nos contar através das próprias ações o que planeja na próxima e na que vem depois desta. Embora seja simples, dotado de esperteza e comprometido com sua natureza pessoal de fazer o que deve ser feito, o motorista se ausenta do grande jogo narrativo com boas oportunidades de diálogos não agarradas. Essa mesma isenção do protagonista do potencial grande drama prometido por Drive, cai por terra em necessidade quando este encontra em cada ato um grande direcionamento para o que irá representar no próximo. O curioso aqui é que o roteiro concebeu um personagem que nunca se estagna no que é. Embora vazio em diálogos transformadores (pouquíssimos na trama), o motorista consegue captar a atenção profunda do público quando segura uma vida nas mãos ou uma responsabilidade em ambas.

A trilha sonora de Drive consegue mimetizar a compreensão da própria cidade. As batidas dos anos 80 e a direção de fotografia aliadas ao contexto das cenas em que o motorista executa os seus serviços torna o filme ainda mais empolgante. E na ausência de um grande alvoroço de um filme com a premissa de ação, é concebida aqui uma fórmula confortável de acompanhamento do protagonista. Nas cenas mais solitárias que destacam a visão do protagonista do mundo, a trilha enfraquece na tentativa de destacar isso. O tema principal do longa e a escassez dele na maioria das cenas por falta dessa oportunidade construtiva, deixa uma sensação de ausência muito grande na composição do longa. Sua qualidade, por outro lado, é inquestionável. A bela assinatura musical do filme é muito rica e evidente, literalmente roubando a cena para si quando se manifesta.

A personalidade concedida ao motorista de fuga é crua e bastante razoável para o que a trama almeja abordar em paralelo. Essa decisão do roteiro e da direção cabem bem quando vemos que o todo é muito maior que a interpretação de Ryan Gosling, que ainda que simplória, não deixa de traduzir a sensação de testemunhar a real força transformadora dentro do filme: a cidade. Todo esse organismo vivo de repúdio, romance e conflitos de interesse somam e tiram propriedade das convicções dos personagens quando voam sobre elas. A bondade passa a se tornar um sacrifício necessário para a sobrevivência e o sonho deixa de coexistir com a esperança. Mais do que o personagem que mais aparece em cena em Drive, a cidade é a grande responsável por fazer dele o filme que é como um drama gradual. Toda a sua dosagem, ainda que fácil de ser engolida, carrega um grau de significado que só explode no momento conclusivo da trama. E é o final o grande responsável por significar e fechar a porta quando tudo sai da maneira que saiu dentro do longa.

Colocado no fogo cruzado das questões de Shannon (Bryan Cranston) e Irene (Carey Mulligan), o protagonista vira o catalizador de mudanças de uma representação do herói modernizado pelos filmes de ação mais antigos. Seja pelo figurino pouco usual ou pela velocidade com que toma decisões ríspidas, Ryan Gosling passa aqui a figura escalada de um simples motorista que se torna o responsável por sustentar todo um arco dramático, além de dá-lo a significância para a ação. O imperativo contido no título traz ao longa uma resposta clara para a maioria destes conflitos. Dotado de uma boa perícia na direção, a fuga é uma óbvia ferramenta trazida da obra literária para comprometer em equilíbrio as cenas que mais prendem o espectador do cinema de ação. Simples, baratas e até criativas, as perseguições conseguem traduzir o ofício do personagem sem engrandecê-lo como um deus do volante ou um senhor das estradas. Ryan Gosling interpreta, sobretudo, um motorista humano e que rasteja em uma história grande demais para quem é. Impossibilitado de salvar a todos sem se ferir com isso, ele prossegue com as obrigações. E elas são visíveis (muito visíveis) a partir da segunda metade da obra.

O que dá exclusividade a Drive não é o direcionamento do roteiro ou a capacidade de com ele criar uma mensagem final interessante. Há no filme o diálogo omisso de uma ambientação que sufoca os personagens até o momento em que eles são forçados a romperem a casca de quem são para passarem pelo buraco. O exemplo mais claro disso é o do personagem de Bryan Cranston, que longe de ser um coadjuvante de peso, consegue passar a representatividade de uma figura paternal para o motorista mesmo com o pouco tempo em cena quando comparado ao dos próprios vilões da trama. A desconfiança, quebra de relações e decisões finais tomadas pelo elenco sem mocinhos é o que mais destaca o longa como imprevisível. Há por um lado o desprezível secundarismo de personagens que movimentariam os conflitos da trama para níveis muito mais pessoais.

Standard (Oscar Isaac), passa a natureza fraca de um sentenciado que ameaça e suspeita com o olhar. Essa estereotipagem incomoda bastante, principalmente porque o filme não dá qualquer desenvolvimento grande ao personagem em si, mas usa o seu sacrifício de estar ali como combustível para o que os outros acabam se tornando, e isso passa rápido e seco pela garganta do espectador. O longa não conta com personagens principais inúteis. Dada a ironia de um protagonista quase ausente de diálogos, as mais importantes passagens daqueles que possuem falas concisas são usadas para reforçar um discurso traduzido pelas ações do próprio Ryan Gosling na trama. Essa força mútua de presença e decisão servem bem para representar a figura final do motorista nos seus últimos momentos na tela. A finalização do longa e sua narração de fundo retratam bem isso, embora de maneira no mínimo decepcionante para o pique a trama manteve até então.

Drive se mantém um clássico para a posteridade sem contar com uma grande quebra de padrões. É um exemplo perfeito do que uma boa direção de arte pode fazer com uma história simples e um personagem principal pouco aprofundado no cru de um roteiro dialogado. Um desafio direto para um screenplay e a prova viva de que boas histórias, independente de suas presunções, continuam a impressionar com a maneira que decidem entregar a sua mensagem final. Visando ser diferente, a trama tenta contar utilizando a ação, mas não consegue fazer isso da mesma forma que quando descansada no véu dramático convencional (o que faz bem). A obra tem viradas de mesa surpreendentes e cenas de violência que passam a credibilidade intensa do que é externalizado pelos personagens que dela participam. Com esse fundamento, a realização de Drive torna-se pura, real e eficiente.