Crítica | Capitã Marvel (Captain Marvel) [2019]

Nota do filme:

Em 2015, após anunciar Homem-Formiga e a Vespa, Capitã Marvel, que até então estava marcado para Novembro de 2018, foi reagendado para 2019. Não era a primeira vez que o filme fora adiado e ele realmente não parecia ser uma prioridade para o estúdio. Em 2017,  o sucesso de público e crítica de Mulher-Maravilha da concorrente DC provou de uma vez por todas que filmes de heroínas eram não só bem recebidos como desejados pelo grande público.

A Marvel claramente sentiu a pressão se intensificar e tentou correr atrás do tempo perdido. A saída foi a mais óbvia: tentar compensar esses 10 anos de espera pela primeira protagonista de seu universo. A publicidade começou a girar em torno disso, Kevin Feige fez declarações de que Carol Danvers seria a mais poderosa do universo compartilhado, a última esperança contra Thanos, redentora dos Vingadores além de, como seu filme prometia provar, a primeira motivação de Fury para criação do grupo de super-heróis.

Tantas promessas, ironicamente, prejudicaram o tão aguardado primeiro filme liderado unicamente por uma mulher. Preso à ter de responder todas as lacunas criadas pela própria franquia – reflexo do machismo da indústria na qual está inserida – Capitã Marvel mostrou-se apenas uma competente história de origem feita com material desperdiçado do que poderia ser um marco cultural, como foi Pantera Negra.

O reflexo mais óbvio disso é a temporalidade da narrativa. Ancorado nos anos 90, o filme só se passa nesta época para respeitar a cronologia do universo compartilhado, mas em nada contribui para o enredo e ainda perde a oportunidade de se tornar icônico. Existe uma reprodução do clima noventista nas cenas de perseguição de carro que funciona bem e empolga, mas logo é abandonada pelos diretores que parecem o tempo todo se conter para não cair em referências apelativas à nostalgia.

Isso tem impacto direto na falta de identidade visual do filme, nada ali chama atenção, o figurino é apagado demais, o design de produção parece ter sido elaborado sem muita dedicação, tudo é muito comedido. Nota-se que por um erro de cálculo o que planejou-se como discrição tornou-se insosso.

O problema central do filme, no entanto, é que há duas narrativas competindo entre si: a história de Carol Danvers e as conexões que ela precisa fazer em função do cronograma do estúdio. Quando esta vence, o filme perde o ritmo, já comprometido por uma edição que não dosa bem a duração de suas cenas. Em compensação, quando a narrativa de Carol se sobressai e conseguimos nos conectar com a humanidade da personagem, o filme toma fôlego e é aprazível de assistir.

Sua busca pela própria identidade é construída a maior parte do tempo por flashbacks, o que felizmente foge a linguagem padrão dos filmes de origem da Marvel, mas, nestes caso, deve funcionar melhor para as mulheres. É mais fácil para o público feminino se conectar com as situações de limitações impostas desde sua infância por conta de seu gênero, a constante necessidade de provação, desmotivação e os obstáculos  enfrentados por querer fazer parte de um mundo majoritariamente dominado por homens – aqui, a metalinguagem ganha grande dimensão: a aviação, a guerra, os quadrinhos, o cinema (a crítica cinematográfica, por que não?) – mas também sua resiliência, a importância de ter uma figura a qual se inspirar – representada pela personagem de Annette Bening – e do apoio entre mulheres, sororidade expressada por sua amizade com Maria Rambeau.



Rambeau é o ponto chave para a descoberta final de sua identidade, mas mais do que isso, é o impulso final para que ela redescubra sua força. Em um belo discurso em que descreve a amiga como a pessoa mais poderosa do mundo muito antes de ganhar seus poderes, é neste importante exemplo de apoio entre mulheres que a auto confiança em Danvers é reconstruída.

Às espectadoras fica, durante os dois primeiros atos do filme,  a familiar sensação de assistir uma amiga em conflito consigo devido a insegurança geradas por suas experiências enquanto mulher, mesmo que ela seja o ser mais poderoso do universo.

A humanização da personagem, no entanto, não se deve apenas a ótima interpretação de Lashana Lynch, mas igualmente à parceria que ela estabelece com Nick Fury, ponto mais alto do filme. Samuel L Jackson está ótimo no papel e tem boa química com Brie Larson, a dinâmica de buddy cop entre os dois impulsiona a trama e a faz funcionar a maior parte do tempo. É pelo olhar dele que conhecemos esse novo mundo, e vamos desvendando a heroína. Fury aparece jovem, inocente, divertido e vulnerável, o que nos deixa ainda mais interessados em saber sobre sua trajetória dos anos 90 até assumir a direção da S.H.I.E.L.D..


Ben Mendelsohn rouba a cena e faz um Talos tão carismático, multifacetado e sensível que é impossível não se simpatizar com ele. A vilania fica a encargo não de uma personagem, mas de uma lógica, escolha ousada e acertada – que tem potencial para ser explorado futuramente  – do roteiro assinado pelos também diretores Anna Boden e Ryan Fleck.

A dosagem do CGI também deixa a desejar, usado de forma excepcional para pequenos detalhes como o rejuvenescimento de atores, é desmoderado no ato final quando há o grande clímax e revelação dos poderes da Capitã, o que dá a aparência mais de animação do que de live action.

Por sorte, o forte subtexto não é atrapalhado pelos efeitos ruins. Capitã Marvel é a saga de Carol Danvers como mulher e como heroína, que vai crescendo conforme descobre a força de seus poderes e, quanto mais se descobre poderosa, mais auto confiante se sente para testar as limitações impostas a ela. E o melhor é que se diverte enquanto faz isso.

No ápice, a super-heroína percebe que seu papel é o que ela decidir que seja e se liberta da necessidade da aprovação de terceiros. Uma longa e dura caminhada que precisa ser percorrida para que outras tantas meninas, representadas pela incrível Monica Rambeau (Akira Akbar) não precisem percorrer.


Debochada, carismática, divertida, forte, justa, determinada e livre, Brie Larson entrega uma ótima heroína que não ficará à sombra de Tony Stark ou Steve Rogers e tem potencial para ser a cara da liderança na próxima fase da Marvel, além de um exemplo para inspirar novas gerações de meninas. Que a trajetória de Carol Danvers as ajude a perceber o quanto antes que somos todas fortes e incríveis mesmo sem soltarmos fogo pelas mãos.