Crítica | Arábia (2017)

Nota do Filme:

O que compõe a individualidade de um ser humano? Muitos buscam a resposta para essa pergunta ao mesmo tempo que tentam responder modificando a sua própria, sendo isso uma constante no decorrer da vida em que as mudanças se dão por diversos fatores que compõem a essência de cada um, o que varia a motivação total.

Partindo dessa premissa, os diretores Affonso Uchôa e Joel Dumans trazem um enredo em que um jovem encontra o diário de um trabalhador que sofreu um acidente, e com isso passa a entendê-lo. Por mais simples que pareça essa premissa, o roteiro disseca o que compõe o trabalhador e a individualidade da pessoa.

O filme se inicia com o jovem André, interpretado por Murilo Caliari, andando de bicicleta na cidade de Ouro Preto/MG enquanto toca a música Blues Run The Game, passando a impressão de que a cena parece ter saído diretamente dos anos 60, conseguindo transmitir o grito de liberdade que o personagem gostaria de dar.

Para isso, os diretores vão optar por uma câmera mais fluída para seguir André, utilizando-se de pequenos movimentos de câmera e optando por grudá-la perto dele para sempre mostrar seu ponto de vista. A edição também ratifica isso ao optar por cortes secos para ditar o ritmo devagar, porém necessário, que a narrativa pede, nunca entregando o que está por vir para audiência, o que faz com que a curiosidade aumente.

E ainda, o ator que interpreta André transmite todos os seus anseios e angústias com gestos simples, através dos desenhos que faz ou o ato de fumar um cigarro, sendo que conforme o roteiro avança, descobre-se que ele e seu irmão não são priorizados por sua mãe, que sempre está ausente por causa do trabalho, o que contribui ainda mais para a própria apreensão.

Contudo, após degringolar os eventos que compõe a premissa do filme e André acha o diário do trabalhador Cristiano, que inclusive é apresentado momentos antes de seu acidente de forma bem discreta, o jovem entra de cabeça na odisseia do operário, com ele contando toda a sua jornada até parar aquele momento.

E é nesse momento que o roteiro, também assinado pelos diretores, começa a se sobressair porque a partir desse ponto há uma narrativa dentro da narrativa, que não deixa de perder a sua qualidade ou curiosidade, bem como amarra as duas linhas temporais no seu decorrer.

Composta por grandes monólogos existenciais que dialogam com o trabalhador braçal, é quase impossível não se identificar com Cristiano, interpretado por um discreto, porém não menos incisivo, Aristides de Souza, que possui os mesmos questionamentos que o ser humano, principalmente quando tenta desenvolver a resposta de “como eu vim parar aqui? ”.

Para causar estupefação, os diretores optam por longos planos ininterruptos, lembrando o estilo de Michelangelo Antonioni, deixando a audiência eletrizada sem precisar de grandes eventos ou catástrofes para isso, apenas simples palavras sobre a vida de uma pessoa comum.

Além disso, o filme nesse momento após o diário ser encontrado utiliza o recurso do narrador em off de forma primorosa, visto que André está lendo a história na primeira linha temporal, sendo que, além de deixar o texto mais dinâmico, dá um ponto de vista único e intimista sobre a odisseia de Cristiano.

Outro ponto chave no desenvolvimento da identificação com Cristiano é a música brasileira pois são apresentadas canções icônicas de Raul Seixas ou Racionais, interpretadas pelo próprio personagem com um violão, dialogando com a sua realidade e moldando sua identidade.

Com isso, a trilha sonora consegue montar perfeitamente os sentimentos dos personagens, ao colocar as músicas dos já citados acima, além de Renato Teixeira e Oswaldo Montenegro, sendo que ainda utiliza o instrumental de forma elegante e competente nas poucas vezes que é necessário.

E conforme o enredo avança, são levantados mais questionamentos pelo personagem, como o seu amor por Ana, que ele diz ser o momento mais feliz da sua vida, os desafios de arrumar um emprego, as dificuldades de se manter as amizades, a necessidade de migrar para outro ponto sem perspectiva do futuro, com isso tudo sendo comprimido e extraído através dos longos monólogos, ou melhor, do relato pessoal escrito no diário.

Para isso os diretores optaram por uma direção bastante sensível ao retratar e transmitir esses assuntos que compõem a individualidade do ser humano, principalmente a do trabalhador braçal brasileiro, ao optarem por ângulos diferenciados como duas mãos se tocando para demonstrar o sentimento de afeição dos personagens, ou uma câmera estática em que o núcleo de personagens conversa recitando seus questionamentos e respostas sobre as questões apresentadas, o que dá um tom bastante intimista a obra.

A fotografia possui um tom naturalista, utilizando-se demais da luz ambiente para retratar a miséria ali vivida pelo protagonista, bem como as próprias crises existenciais, além de ser intensificada conforme os personagens vão mudando ou experimentam uma nova alternativa.

Além disso, o roteiro atinge o seu ápice no momento em que amarra as duas narrativas dentro da segunda, ao utilizar o ponto de vista de Cristiano sobre André, elucidando a situação do jovem para a audiência e amarrando todos os pontos que faltavam, além de que, momentos antes do acidente, na última página escrita do diário, Cristiano reconta o sonho que ele tem toda a noite na floresta e, após questioná-lo, encerra o longa com o último impacto: “eu to vivo, e ainda consigo respirar”.

Logo, o longa traz a construção de um indivíduo frente a toda sua vivência, o que fez ele chegar até aquele momento e como aquilo foi influenciado e influencia todos que tem contato com Cristiano, não dando uma resposta clara sobre o que compõe a sua existência, e sim ilustrando como ela se formou.