Crítica | Caminhos Perigosos (Mean Streets) [1973]

Nota do filme:

Ao longo da história do Cinema, diferentes cineastas se caracterizaram por retratar, cada um à sua maneira, a cidade de Nova York: Spike Lee, Woody Allen, Francis Ford Coppola, Noah Baumbach e James Gray são apenas alguns dos nomes que, utilizando suas próprias abordagens e estilos, ofereceram perspectivas e olhares particulares sobre a metrópole. Assim, podemos conhecer as diversas facetas de uma das cidades mais multifacetadas do mundo de acordo com as visões apresentadas por múltiplos diretores. Ao mesmo tempo, tais filmes ajudaram a criar o imaginário coletivo que possuímos, fazendo com que criemos nossa própria impressão acerca dela.

O que nos leva a Martin Scorsese. Inegavelmente um dos grandes responsáveis por retratar e criar esse imaginário sobre Nova York, seus filmes estabeleceram uma série de convenções sobre o universo gangster que seriam reproduzidas por outros cineastas nas décadas seguintes. Tais convenções podem ser rastreadas até Caminhos Perigosos, terceiro longa de ficção do diretor, lançado em 1973. As principais características de Scorsese, suas escolhas estilísticas, técnicas e narrativas, que seriam aperfeiçoadas e se tornariam clássicas no futuro, já se encontram ali.

Em Caminhos Perigosos acompanhamos a história de Charlie (Harvey Keitel), sobrinho do chefe da máfia local que aspira a crescer no submundo do crime, ao mesmo tempo em que lida com a namorada Teresa (Amy Robinson) e precisa conter os ânimos do imprevisível amigo Johnny Boy (Robert De Niro). Como se pode notar pela breve sinopse, o roteiro de Scorsese e Mardik Martin não opta por muitos rodeios, sendo direto na construção do arco dramático vivido por seu protagonista. E por falar em protagonista, o Charlie de Harvey Keitel não se distancia muito do que seriam os personagens de Scorsese, a saber: anti-heróis perturbados que buscam, em meio a uma vida errante, algum tipo de redenção. Portanto, não é por acaso que a religiosidade esteja presente ao longo da projeção, como na frase que abre o longa (“Você não paga seus pecados na igreja. Você os paga nas ruas e em casa.”).

Já a Nova York do diretor é hostil, crua e fria, justificando o título da produção. Trata-se de um lugar que não hesita em devorar seus habitantes ao menor sinal de fragilidade (e é interessante notar como o diretor manteve essa visão da cidade mesmo em suas comédias, como em Depois de Horas). Nesse sentido, o design de produção adquire uma função importante ao retratar cenários sombrios e decadentes, beirando a sujeira.

Se o design de produção contribui para estabelecer a atmosfera da narrativa, a direção de Scorsese é fundamental para dar o tom da história. E é nesse ponto em que podemos identificar mais nitidamente as características que o consagraram na indústria. A utilização da luz vermelha, que se tornaria clássica em Os Bons Companheiros, é uma constante em Caminhos Perigosos. Seja na iluminação do bar, nas paredes do restaurante ou no título do filme durante os créditos iniciais, a cor surge para pontuar a narrativa, indicando que algo perigoso sempre está à espreita e pode ocorrer a qualquer momento, aumentando no espectador o clima de ameaça e imprevisibilidade. A câmera na mão e os movimentos circulares também estão presentes aqui, traduzindo a instabilidade dos habitantes daquele mundo. Também é digna de menção a fotografia de Kent L. Wakeford, que explora muito bem os cenários da cidade — especialmente os noturnos.

Caminhos Perigosos também marca o primeiro capítulo da fértil parceria de Scorsese com Robert De Niro, que seria repetida em outros sete longas (oito, se considerarmos a produção The Irishman, com estreia prevista para 2019). E o trabalho de De Niro aqui é simplesmente primoroso; seu Johnny Boy, embora não seja o protagonista do filme, rouba a cena em todas as ocasiões em que aparece, em especial durante uma cena em que, conversando com o personagem de Keitel nos fundos de um bar, De Niro envereda-se por um monólogo — feito em grande parte no improviso — que evidencia o talento que o ator possui para prender nossa atenção. Já Keitel apresenta uma atuação sólida, retratando Charlie como um sujeito dividido entre o pragmatismo e a euforia, apresentando uma personalidade mais complexa do que poderíamos supor em um primeiro momento (e é curioso notar como Charlie se dirige ao espectador através da narração em off, outro elemento que se tornaria marca registrada de Scorsese).

Também vale notar a trilha sonora, outra característica marcante de Scorsese. Com clássicos do rock e do pop dos anos 1960 e 1970, as músicas pontuam e contribuem para ditar o ritmo da narrativa, e mesmo o som não-diegético aparece como se fosse de modo espontâneo — por exemplo, quando Jumpin’ Jack Flash começa a tocar na cena de introdução de Johnny Boy, podemos perfeitamente imaginar que o bar estaria de fato tocando a música em sua jukebox.

A cena final do filme (em que há uma ponta de Scorsese, algo recorrente em sua filmografia) estabelece uma rima com a cena inicial, pois testemunhamos que determinados pecados são de fato pagos nas ruas. E à medida que Charlie caminha sem destino específico, passamos a nos perguntar se ele finalmente encontrou sua redenção. Ou se aquele não era o único destino possível para o personagem desde o começo.