Nota do Filme:
One, two, you know what to do!
O ano é 1927, a cidade é Chicago, Illinois, e o dia está mais ensolarado do que nunca. Em um período marcado pela segregação racial, Ma Rainey, uma cantora negra com um talento inquestionável, despontava como a verdadeira mãe do blues e enfrentava diariamente uma sociedade preconceituosa, machista e opressora.
Para entendermos melhor algumas nuances do filme, é interessante que passemos rapidamente pelo contexto histórico. Com a Grande Imigração (1910-1970), muitos foram para o Norte em busca de oportunidades de trabalho e uma vida mais digna.
Estimuladas pelas manchetes do jornal Chicago Defender, um dos principais periódicos afroamericanos da época, que, oportunamente, contrastava os ataques que aconteciam frequentemente no Sul com as oportunidades e promessas de uma vida melhor no Norte, famílias inteiras realizaram suas mudanças de forma definitiva.
Assim, tendo em vista a alta na oferta de empregos, causada também pelas necessidades criadas pela Primeira Guerra Mundial, a migração em massa aconteceu, mas não sem a resistência dos sulistas, que não queriam perder a mão de obra barata, em abundância por lá.
Até as Leis Jim Crow, que já estavam em vigor desde 1877, foram utilizadas na tentativa de atrapalhar a migração, fato que é contado por um dos integrantes da banda, Cutler, ao narrar a história de um padre que perdeu o trem por ter ido ao banheiro, exclusivo para negros, que era longe da estação. Banheiros, bebedouros e assentos exclusivos em transportes públicos, entre outras medidas, eram muito comuns nesta época. A humilhação da população negra era constante.
É nesse contexto de castas e resistência que o filme se passa. Em que pese os brancos diminuíssem os negros a todo o tempo, eles sabiam do valor e do potencial que a cultura afroamericana possuía, e os tratavam bem quando lhes era conveniente.
E assim começa o filme: em uma de suas temporadas de sucesso, Ma aluga um estúdio, gerido por brancos, para gravar seus singles junto com sua banda, toda formada por negros, em uma tarde muito quente na cidade de Chicago.
O protagonismo do filme é dividido entre Levee Green, trompetista da banda de Ma, personagem de Chadwick Boseman, nosso eterno Pantera Negra, e a suprema Ma Rainey, interpretada por ninguém menos que Viola Davis. Em um segundo plano, e na maior parte do tempo ambientados na sala de ensaios no porão, Toledo (Glynn Turman), Cutler (Colman Domingo) e Slow Drag (Michael Potts), juntamente com Levee, expõem suas ideias e vivências no mundo da música.
Tomando o centro das atenções para si o tempo todo, Levee fala sobre seus anseios como músico, suas ambições como compositor e as dificuldades para emplacar suas ideias quando precisa negociar com os brancos, tudo isso em longas exposições. A imersão em seu discurso é inevitável, tamanha a paixão com que fala de sua vida e até mesmo de seus acontecimentos do cotidiano.
Há grandes monólogos no decorrer da trama, principalmente de Levee, e um pouco menos de Ma. A mãe do blues narra suas dificuldades como cantora, que, mesmo com todo o seu sucesso, precisa impor respeito o tempo todo em qualquer lugar que vá, seja por meio de suas atitudes, falas ou mesmo pela sua forma de se vestir. Seus discursos e atos transparecem sua autenticidade e determinação, necessárias para sobreviver neste meio e nesta época.
Embora conte com um elenco de peso, tanto na frente quanto atrás das câmeras, o filme não convence. As cenas longas em um mesmo ambiente evidenciam que o roteirista quis preservar a estética teatral da trama, o que trouxe muitas vezes a sensação de estarmos assistindo a uma peça gravada. O roteiro é, de fato, uma adaptação da peça atemporal de August Wilson, e dirigido pelo premiado diretor George C. Wolfe, vencedor de um Tony, o que chega a explicar a atmosfera puramente teatral do longa, mas, infelizmente, não a justifica.
A estética do filme traz uma sensação incômoda com suas luzes primordialmente quentes, seus ambientes fechados e, principalmente, por seus personagens encalorados o tempo todo. Esse foi um dos pontos que mais me chamou a atenção: o poder do jogo de cores em um filme. Sabemos que a fotografia tem a capacidade de despertar certos sentimentos no telespectador, mas é realmente incrível quando nos damos conta dos seus efeitos.
Em que pese a trama não ter me convencido por completo, há pontos que merecem destaque. Há um simbolismo interessante na relação de Levee com alguns objetos e situações no decorrer do filme. Farei uma breve análise mais aprofundada a partir deste ponto da crítica, então cuidado com os spoilers a partir daqui!
A relação de Levee com seus sapatos novos, amarelos e brilhantes, é, no mínimo, intrigante. Confesso que durante o filme não entendi muito bem qual a real importância dos sapatos para ele, então fui pesquisar depois. Lendo sobre o assunto, entendi o simbolismo dos sapatos: só andavam calçados aqueles que já tinham sido libertados do regime de escravidão.
Gastar o salário semanal em um par de sapatos era mais do que um luxo, era um sinal de liberdade, de autonomia. Levee conta em vários momentos do filme histórias sobre sua família, que, mesmo liberta e com um bom pedaço de terra própria, sofreu preconceito e foi alvo de ataques racistas. O fato de terem sido libertos não significava que eram, enfim, livres.
Depois que entendi a relação com os sapatos, comecei a analisar a relação da personagem com a porta, que estava sempre trancada. As cenas no estúdio do porão me traziam uma sensação claustrofóbica por diversas vezes, um incômodo latente, que era potencializado sempre que Levee se sentia preso e tentava destrancar aquela porta, que ficava no fundo da cena, quase imperceptível, mas que aparecia sempre quando ele era contrariado.
Ao assistir o documentário dos bastidores do filme, disponível também na Netflix, compreendi que a porta nada mais é que a representação da falácia do sonho americano, de que basta querer para conseguir, de que tudo está ao seu alcance. A realidade de Levee, e de tantas outras pessoas que acreditaram neste conto da meritocracia, é a frustração, a negativa atrás de negativa, o retorno ao status anterior, onde tudo lhe é renegado.
A morte do colega em um rompante de fúria representa o desespero de Levee frente às situações que lhe fogem ao controle, sobre todas as promessas que lhe foram feitas e nenhuma foi cumprida. Sua família despedaçada, a promessa de uma vida digna, a morte de sua mãe, a desvalorização de sua música, e, principalmente, a fé que ainda habitava o colega mesmo diante de tudo isso, foram mais do que suficientes para que ele saísse do seu eixo e cometesse o crime.
A atitude da personagem naquele momento não serve para defini-lo como um assassino inconsequente, mas sim para mostrar ao público a realidade vivida pela população que era tanto massacrada naquela época; negros matando negros, enquanto os brancos lucravam em cima de sua arte. E é exatamente o que acontece nos minutos finais do filme, onde a música que Levee escreveu e vendeu a um preço insignificante é interpretada por uma insossa banda, formada por brancos, e aplaudida pelos donos da gravadora que tanto brigaram com Ma e sua banda.
Vale lembrar que a história da Ma Rainey é baseada em fatos reais e a das outras personagens é inspirada na história de tantos músicos que lutaram para ter o reconhecimento de seu talento. Ma foi um ícone a frente do seu tempo, um verdadeiro símbolo do feminismo, falando sempre sobre suas lutas, sua sexualidade, e também sobre suas conquistas em suas músicas.
O protagonista Chadwick Boseman levou o Globo de Ouro de melhor ator em filme de drama. O ator infelizmente nos deixou em meados de 2020, mas entregou a tempo uma de suas melhores atuações. Com cinco indicações ao Oscar de 2021, há grandes expectativas para o longa, mas há quem tenha o que comemorar desde já: com a quarta indicação de sua carreira, Viola Davis se consolidou como a atriz negra mais indicada na história da premiação.
Sou muitas em uma só. Como já dizia o Gato da Alice: We’re all mad here. 🙂