Crítica | Queen e Slim: Os Perseguidos (2019)

Nota do Filme:

“Deixem eles em paz! Deixem eles em paz! Parem de nos matar! Parem de nos matar!” esse coro incisivo e vital ecoa na mente de quem vê desde o início o primeiro longa-metragem dirigido por Melina Matsoukas: Queen e Slim: Os Perseguidos (2019), uma versão contemporânea e representativa do clássico Bonnie e Clyde sobre um casal de jovens negros que, após um encontro no Tinder, são parados pela polícia e precisam fugir pelo país após matarem o oficial em legítima defesa. Assim como o antecessor, o longa de Melina, que assinou o documentário da Beyoncé, trabalha com a subversão social como ponto de partida para estabelecer uma crítica ao sistema no qual vivemos, tendo como alvo a estrutura social racista institucionalizada. Declaradamente inspirada por diversos road movies e clássicos de gêneros diversificados, de West Side Story a Thelma e Louise, Melina encontra, no entanto, a sua própria ótica sob o gênero e transforma a viagem em algo para além do trajeto mapeado com uma maestria singular e até mesmo provocadora. 

Sob um inconsciente marcado por memórias que afligem a comunidade negra ao redor do mundo, o destino de Queen (Jodie Turner-Smith) e Slim (Daniel Kaluuya) está selado desde o início. As palavras de resistência ainda não foram ecoadas, mas no momento em que o carro sai em disparada após o embate com o policial sabe-se que nada ou pouco há para se fazer e conquistar a justiça que há mais de 400 anos é almejada. E não há intenção alguma de esconder o fim, visto que, se o roteiro faz questão de ainda nos apresentar situações que alimentam nossas esperanças, a ponto de irmos contra o nosso próprio julgamento, a diretora segue uma direção contrária, se utilizando de uma linguagem, principalmente a partir da cinematografia, expansiva e sensorial.

O longa, então, toma uma direção com foco na trajetória deles enquanto seres humanos, para as suas feridas, para os momentos que serão ali compartilhados, e não para um possível desfecho surpreendente da fuga. É acolhedora a forma como a decupagem de planos médios e abertos, entrelaçados em uma montagem expansiva de poucos cortes, ou seja, que permite a essência daquela experiência ser explorada ao máximo, legitima a presença dos dois, oferecendo-nos uma oportunidade que muito lhes foi negada: do auto-conhecimento para além dos estereótipos, da permissividade emotiva, da liberdade de expressão e da simples e plena impulsividade humana, características básicas da vivência que nos moldam e nos fazem construir experiências individuais. 

Há uma ironia fundamental que permeia todo o filme e que vai além do fato de que os protagonistas, sob uma via moral jurídica, são anti-heróis por terem fugido de um julgamento que se torna toda a força do filme. Ao mesmo tempo em que a construção humaniza os seus personagens, oferece um lugar no mundo que nunca efetivamente tiveram, a todo tempo somos lembrados que eles só conseguiram esse lugar por terem sido expostos e culpabilizados pelas injustiças sociais.

Assim como os espectadores, os personagens não são ingênuos perante o seu destino, mas ao tomarem a situação pelas rédeas, eles constroem em meio a falibilidade, a ideia de que a liberdade, aquela que te preenche e dá sentido à sua existência, só vem quando há uma subversão daquilo que te apreende, não importa o que custe. Ambos, empoderados pela presença um do outro, ressignificam a fuga política na ideia de que se vão determinar como serão massacrados ao menos terão o controle de como será a trajetória deles até o fim. Eles se impõem para que possam viver plenamente, pelo menos uma vez. 

Nesse sentido, a direção sensível e assertiva de Matsoukas é melancolicamente incômoda. Ao se apropriar das emoções dos personagens e das transformações subjacentes que eles estão vivendo, ela a todo momento relembra a audiência de que eles não terão outra chance. Dessa forma, portanto, as cenas de afeto, amor e esperança que a dupla vive se transformam em algo que transcende a tela, tornando-se pesarosas para o público – a cada sequência, me vi em um mix de emoções, sem saber exatamente o que sentir naquela hora. Um dos pontos mais marcantes do filme exemplifica muito bem essa atmosfera poeticamente e que se torna impossível desviar dos arrebatamentos sentimentais.

Em uma montagem paralela, Matsoukas relaciona o explodir das manifestações com o sexual de Queen e Slim, que finalmente permitiram consumar a intensa troca. Nessa sequência, a diretora não está comparando as duas variáveis dessa equação, mas explorando seus significados semióticos quando colocadas lado a lado. A reverberação dessa relação ramifica entre ideias de que naquele momento os dois se entregam a um estado transcendental, é o momento que eles alcançam a plenitude da vivência deles, enquanto o mundo, em gritos de defesa e resistência, imortalizam suas vozes, dando propósito a suas atitudes. Juntos, eles se reconhecem para si mesmos e para o mundo, mesmo que tudo um dia acabe. Naquele momento, eles foram vistos. 

Nessa ode visual e emocional, pouco importa o roteiro e seus artifícios. A contemplação é a protagonista. É um filme que desafia o espectador a se desprender da história e do seu desenrolar, convidando-o a se descortinar. Não há dúvidas de que Melina obteve controle total da sua visão e do projeto em suas mãos. Fica extremamente evidente sua postura enquanto diletante: seu olhar transformou uma tragédia em uma poesia romântica. Além da minuciosa escolha de planos e cortes, houve um cuidado preciso da fotografia do filme. O duelo entre os tons amenos e quentes, é evidente durante todo o filme, evocando a oscilação dos sentimentos, a emitente tragédia dos personagens, ao mesmo tempo que enaltecem seus traços negros.

Depois de avançarem alguns quilômetros pela estrada, a luz do sol quente, um momento que é marcado pelo antagonismo da angústia e liberdade ao livre, o casal decide se divertir em uma balada só para negros. Com medo, Queen tem seus receios, mas Slim logo a tranquiliza após se deparar com o apoio dos locais. Uma cena que poderia ser apenas mais uma se transforma em uma das mais bonitas representações do significado de ancestralidade. Sob uma mescla de cores alaranjadas, esverdeadas e amareladas, que significam dentre muitas coisas serenidade, juventude e acolhimento, eles dançam enquanto reconhecem o olhar dos outros como forma de proteção, de respeito a história deles e do que toda a trajetória significa para a posteridade. 

Essa abordagem sincera e singular da diretora atenua as críticas contundentes ao roteiro. Há certos problemas no desenvolvimento da narrativa, exaltados com a oscilante construção dos personagens, dos protagonistas aos que que cumprem o trabalho de representar os diversos lados da luta, tanto da branquitude quanto da negritude, e situações e diálogos descartáveis pelos estereótipos e comicidades aleatórias. Alguns criticam até as interlocuções feitas pela diretora, como a própria sequência do protesto-sexo citado acima, mas essa visão subversiva é a força do filme, assumindo a função principal do cinema: provocar para refletir e assim transformar, muito além das respostas em cena.

Sob o afeto de Melina Matsoukas, os atores Daniel Kaluuya e Jodie Turner-Smith, portanto, não se tornam mártires, se tornam eles mesmos, mostrando que a eficaz resistência é a de viver sendo você mesmo. A fotografia que o casal tira para registrar sua odisséia se transforma em algo muito além do registro momentâneo, é a posse de uma memória que não mais será preterida, e que, pelas mãos da nova e da próxima geração sairá do filme fotográfico para estampar murais, ruas, camisas e o coração dos que não desistem da luta. Nas palavras de Nina Simone, o filme significa a busca incessante de uma liberdade “sem medo” e permite que, como eles mesmo juram um para o outro, se tornem seus próprios legados.