Crítica | A Sombra do Pai (2018)

Nota do filme:

A Sombra do Pai acompanha a Dalva (Nina Medeiros), menina de nove anos, filha de Jorge (Júlio Machado) e sobrinha de Cristina (Luciana Paes). Órfã de mãe e com pai ausente, acaba desenvolvendo uma boa relação com a tia, que sonha em casar e constituir a própria família.

Contudo, acontecimentos no trabalho de Jorge fazem com que Dalva tenha que assumir um papel mais atuante na residência, abandonando lentamente a sua infância. Ao mesmo tempo, crê possuir poderes sobrenaturais, de modo que inicia um plano para trazer sua mãe de volta e restaurar a sua família.

Gabriela Amaral Almeida é um nome conhecido no cinema brasileiro. Sua carreira como diretora teve início com curta-metragens, que sempre atraíram bastante atenção. Em 2012, sua obra A Mão que Afaga arrematou sete prêmios no Festival de Brasília, dentre eles o de Melhor Roteiro para a própria, e o Prêmio da Crítica (Júri Abraccine). Após, no ano de 2014, foi novamente uma das vencedoras do Festival, dessa vez por Estátua!, que ganhou três estatuetas. Dessa forma, a natural transição para os longa-metragens ocorreu em 2017, com O Animal Cordial, que, bastante elogiado, rendeu ao ator Murilo Benício o título de Melhor Ator [1] no Festival do Rio de 2017. Tem-se como importante esclarecer o contexto da ascensão da diretora, uma vez que intrinsecamente ligado ao seu novo filme A Sombra do Pai.

Nesse sentido, a história narra um conto de uma menina carente de afeição parental que, sem os instrumentos emocionais necessários, se vê forçada a cuidar de seu genitor, cada vez mais deprimido, o que demonstra uma clara inversão de valores na residência. Ao mesmo tempo, a ausência de sua mãe, da qual mal consegue se lembrar, faz com que idealize a figura materna, de modo a crer que o seu retorno será a solução para todos os seus problemas.

Destaca-se, assim, que a cena de abertura da obra é bastante competente em transmitir ao espectador, se não todas as informações necessárias, ao menos indícios nos quais se basear. O ato de Dalva em desenterrar sua velha boneca, quase como se desenterrasse um cadáver, mostra que, desde uma tenra idade, tem um contato bastante forte com o conceito da morte. Simultaneamente, seu pai procede com a exumação do corpo da esposa com a intenção de recuperar pertences que com ela foram enterrados. Há, então, certa simetria nas ações, que servem como foreshadowing aos eventos futuros.

A jovem é, também, fã do gênero de terror e, visto que é deixada em casa sozinha por bastante tempo, constantemente assiste a filmes como A Noite dos Mortos Vivos e O Cemitério Maldito. Tais acontecimentos servem não apenas para contextualizar o estado de espírito da protagonista, mas também para levantar importantes questionamentos acerca dos acontecimentos em tela. Seriam os eventos subsequentes meros delírios da garota? Há, realmente, acontecimentos sobrenaturais ocorrendo? E, mais importante, ela é responsável por eles? À audiência cabe preencher as lacunas, o que dá um ar intimista à história.

Há certa introspecção nos personagens principais, diretamente ligado à sua maneira de ser. Isto porque Jorge se recusa a aceitar o seu papel na criação da filha, uma vez que a sua esposa faleceu. Dessa forma, Dalva retrai as próprias emoções, fechando-se em si mesma. Por fim, Cristina apenas busca uma maneira de escapar de sua situação atual, não apenas econômica mas também emocional, e escolheu personificar em tal fuga em um possível marido.

Os aspectos técnicos também impressionam. Com uma fotografia sóbria, retrata-se uma família despedaçada pela perda, que em momento algum conseguiu se recuperar de eventos passados. Criam-se, ainda, imagens interessantes e atrativas que, naturalmente, absorvem o espectador nesse microcosmo.

As performances do filme impressionam positivamente. Luciana Paes, já familiarizada com Gabriela Amaral pelo seu trabalho em O Animal Cordial, consegue transmitir o afeto que sente pela pequena sobrinha, por mais difícil que seja a sua relação com o irmão. Nessa seara, Júlio Machado convence como um viúvo que não está preparado para aquilo que dele se espera. Sua dificuldade no trato com a filha espelha graves problemas da atualidade, isto é, pais emocionalmente ausentes das vidas dos filhos. Nina Medeiros, cujo primeiro trabalho como atriz em longa-metragens foi o ótimo As Boas Maneiras, confere à sua personagem uma interessante dualidade de inocência/determinação, um feito difícil, sobretudo à uma atriz mirim.

Dessa forma, A Sombra do Pai se trata de um conto sensível sobre uma criança necessitada de afeto que, em sua ânsia, volta-se ao passado. Ao abordar importantes aspectos sociais, tem-se um roteiro interessante que se aproveita do seu gênero de modo a construir uma narrativa imersiva e intrigante, ao mesmo tempo em que oferece espaço ao espectador para que preencha as lacunas restantes.

Filme visto durante o 20º Festival do Rio, em novembro de 2018

[1] Houve empate com o ator Daniel de Oliveira pelo filme Aos Teus Olhos.