Crítica | O Animal Cordial (2018)

“A mão que afaga é a mesma que apedreja, se a alguém causa inda a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija”. Essa frase, do poeta Augusto dos Anjos, apesar de escatológica, serve como uma espécie de resumo da sociedade, não da atual, mas a sociedade durante toda a história, as mãos que afagam para conseguir algo, são as mesmas que apedrejam quando conseguem.

Inconscientemente, “A mão que afaga”, curta da diretora Gabriela Amaral Almeida, fala sobre esse tipo de pessoa, que infelizmente quase sempre conseguem o que desejam dessa forma, puxando saco das pessoas certas, acabando com elas depois, sendo educados sem querer ser, sendo falsos, ou seja, sendo cordiais.

Novamente, Gabriela Amaral Almeida aborda essa cordialidade. Totalmente diferente do curta citado, no que diz respeito a história, mas semelhante ao mostrar as mãos que afagam, “O Animal Cordial”, primeiro longa que a diretora assina, conta uma história de terror, que remete filmes giallo, como os dirigidos por Dario Argento, Mario Bava e Lucio Fulci, porém de forma original, que se encaixa dentro daquilo que o público brasileiro conhece e as vezes, até convive.

Inácio (Murilo Benicio) é dono de um restaurante em São Paulo. Chefe do local, sua equipe de funcionários é formada e em parte comandada por Sara (Luciana Paes) e Djair (Irandhir Santos), este último é chefe de cozinha. Após a saída de alguns funcionários e a entrada de um casal de clientes, Veronica (Camila Morgado) e Bruno (Jiddu Pinheiro), o local é assaltado e quem está lá dentro é rendido por uma dupla, entre eles Magno (Humberto Carrão).

A obra pode ser dividida em três partes, assim como o restaurante do filme, em todas elas, as atuações são diferentes, a trilha é diferente e claro, o ambiente físico do local, já que nunca saímos do restaurante, mas visitamos outros cômodos. A primeira parte é a área pública, onde ficam as mesas e o caixa, a segunda é a cozinha e a terceira é o banheiro.

Na área pública, vemos Inácio como um homem educado, cordial, que trata bem as pessoas, porém, com vontade de mandar, de se impor, para isso ele usa da cordialidade, do sorriso e da fala passiva agressiva, como vemos com Sara, mesmo que essa seja, como disse Djair, “uma puxa saco, lambe cu” do chefe, independente dos diversos abusos que ele comete.

E ele faz isso na cozinha, onde trata os funcionários de forma absolutamente oposta aquela que ele usa na área pública, com grosserias, como se eles fossem burros e estivessem abaixo na hierarquia social. Assim, o chefe abusivo é mostrado nas cenas que ocorrem nesse cômodo, mesmo depois do assalto, que é quando o filme se torna violento visualmente.

Mas não é só Inácio que muda, Sara também, vemos nela, além do puxa-saquismo, uma relação de certa dependência do trabalho, mesmo que ela não goste do serviço em si. Ela quer ser uma pessoa como as que ela odeia quando atende no restaurante, rica, folgada, se acha melhor do que os outros, por isso não é surpreendente ver que, mesmo ela xingando a personagem de Camila Morgado logo após ser destratada por ela, Sara faz igual quando se vê em conflito com os funcionários da cozinha, lançando palavrões quando está entre a cozinha e o banheiro.

A relação entre essas duas é interessante, não apenas devido a esse confronto social, mas pelo fato de Sara não aprender que isso é errado e se tornar igual, como se fosse uma personagem de um livro escrito por Machado de Assis – o autor tinha como um dos princípios não ensinar os personagens aprenderem com os erros e sim fazer eles repetirem os erros, vide “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Esses xingamentos, essa vontade de ser a outra, fica clara na cena onde ela destila palavrões quando se afasta, mudando a sua personalidade na medida que muda de cômodo. Isso fica muito claro graças a uma montagem rica e a movimentos de câmera que buscam o close, o primeiro plano, sempre se aproximando do personagem para que o público sinta o que eles sentem.

Por isso, quando Veronica come o pedaço de carne e logo em seguida o assalto inicia, vemos quem é quem naquele lugar, o filme se torna um estudo antropológico e antropofágico, explorando as necessidades fisiológicas do ser humano sem nenhum pudor.

Vemos o comer, o beber, o transar e a necessidade de ir ao banheiro tudo ali, com o uso da morte e do realismo/naturalismo. A obra se torna visceral, o close up contribui para a violência, a montagem para a composição de ambiente, como a cozinha e o banheiro claustrofóbicos, o corredor minúsculo que dá acesso ao deposito, a similaridade do local com um abatedouro, por ocorrer a morte, o corte da carne e a alimentação feita com essa e até mesmo as pessoas, enquadradas de forma a parecerem pequenas, baixas.

Imagem: Califórnia Filmes / DIVULGAÇÃO

E são, pois, é natural das pessoas ser patético, mesquinho, ao mesmo tempo em que se é cordial.  A trilha contribui para preencher esse sentimento de maldade, se na área pública toca uma versão eletrônica de “Inverno” de Antônio Vivaldi, na cozinha as músicas que parecem ter saído de um filme de John Carpenter (principalmente “Christine – o Carro Assassino” e “Fuga de Nova York”) e em todos os ambientes, uma música que é mais alta do que as vozes do protagonista, com o objetivo de passar medo ao público.

Medo esse que é transmitido pelas grandes atuações de um elenco brilhante, Murilo Benicio consegue cumprir exigências físicas de maneira invejável, assim como Luciana Paes, ambos se dão muito bem nas cenas exclusivas dos dois, Humberto Carrão consegue passar a crueldade de um assalto, ao mesmo tempo em que trabalha em mostrar a necessidade de fazer aquilo e Irandhir Santos cria um personagem interessante, servindo como ligação entre os diversos arcos de um roteiro muito bem escrito pela própria diretora, de ponto de partida para críticas sociais e por criar metáforas de relações.

Como as entre patrão e empregado, na cena onde ele e Inácio discutem sobre o horário de saída devido ao fechamento do metrô, ou na qual ele, ao brigar com Inácio após esse o ter acusado de algo que não fez, diz “é sempre culpa do preto, do Paraíba, do viadinho” querendo dizer que o patrão sempre busca culpar as consideradas minorias qualitativas, ao invés de olhar para si e ver o que fez de errado.

Da mesma forma, a personagem de Sara passa a importância do empoderamento feminino e da independência que a sociedade machista busca limitar quando se trata do papel da mulher. O crescimento dela na obra, o seu protagonismo, é uma história também de liberdade.

Porém, se todos tem algo em comum ali, é o fato de serem animais que se comportam como pessoas cordiais para disfarçar a sua real personalidade, Inácio chegou até onde chegou por puxa-saquismo, assim como Sara e quando um deles não quer seguir pela mesma toada, essa pessoa é maltratada, discriminada e até coisa pior.

Se tem algo que o filme de Gabriela Amaral Almeida mostra, é que nós somos esses animais cordiais, somos as pessoas patéticas descritas acima e se quisermos mudar, ainda tem muita coisa a se fazer, por isso, por ser um retrato da realidade, “O Animal Cordial” é um dos grandes filmes do ano.