Nota do filme:
Com a predominância de Hollywood, filmes que abordam a temática do american dream (e suas problemáticas) se tornaram mais do que rotineiros em nossas experiências cinematográficas. Mas produções sobre o que poderíamos chamar de french dream também existem, de modo que torna-se uma atividade enriquecedora entrar em contato com novas e diferentes realidades, ainda que nem sempre estejamos testemunhando um conto de fadas.
Quatorze anos separam A Culpa é de Voltaire (2000) de Samba (2014), sendo curioso notar como ambos compartilham uma rima não intencional. Se no primeiro, o protagonista, tunisiano, é aconselhado a se passar por argelino, pois isso cairia melhor perante o departamento francês de imigração (“Tratam melhor os argelinos. Pelo passado…se sentem culpados.”), no segundo, um dos personagens, que até então dizia ser brasileiro, revela ter nascido na Argélia, mas que escondia esse fato porque “tudo fica mais fácil quando você fala que é brasileiro”. Tal semelhança entre ambos os casos poderia ser mera coincidência, porém é reveladora das poucas mudanças envolvendo as dificuldades que imigrantes, em geral e do norte da África em particular, encontram ao chegar à terra dos filósofos iluministas, berço da Enciclopédia e dos motes de liberdade, igualdade e fraternidade.
Jallel (Sami Bouajila) é um jovem tunisiano que chega à capital francesa e, sem documentos, fará o possível para trabalhar e sobreviver, se deparando no caminho com figuras e situações inusitadas, transitando entre o cômico e dramático na velocidade de um batimento cardíaco.
O longa foi o primeiro trabalho na direção de Abdellatif Kechiche (Azul é a Cor Mais Quente), que já demonstra aqui características que manteria em sua filmografia, como as tomadas fechadas nos rostos dos atores e a longa duração de algumas cenas, por exemplo, na confusão durante uma partida de petanca, na qual há tempo suficiente para que se vá do desconforto ao humor.
Mas o que mais fortalece a produção é o trabalho de composição de seus personagens. Repletos de humanidade, os habitantes daquele universo constantemente preenchem suas cenas com abundantes doses de calor, o que estabelece um forte contraste com as duras condições sob as quais vivem. Da simpatia inocente de Franck (Bruno Lochet) aos rompantes de Nassera (Aure Atika), passando pela resiliência do protagonista, entramos em contato com uma Paris ao mesmo tempo combalida e pulsante, esmagada e resistente. Torna-se, portanto, difícil adotar uma postura de indiferença para com aquelas figuras, devido à empatia que despertam. E talvez o símbolo máximo disso seja Lucie, dotada por Élodie Bouchez de tanta fragilidade que parece que irá quebrar em mil pedaços a qualquer momento. E a jovem parece ter noção disso, o que torna tudo ainda mais trágico.
Assistir a A Culpa é de Voltaire vinte e três anos após seu lançamento é, enfim, um experimento ambíguo: por um lado, é prazeroso observar como Kechiche já sabia contar histórias muito antes de ganhar a Palma de Ouro em 2013; por outro, é frustrante constatar como pouco mudou de lá para cá, de modo que um Jallel da vida real ainda enfrenta os mesmos problemas.
O que nos leva à cena final, na qual nada precisa ser dito para que compreendamos o que está se passando. Na verdade, o que se passa é óbvio, o mais intrigante é que quando a câmera fica parada em frente à estação de metrô, já somos capazes de prever o que virá em seguida. Mas isso não significa que a narrativa seja previsível, reflete apenas como certas desesperanças eram previsíveis – e seguem sendo.
Historiador que acredita que a vida fica mais fácil quando vamos ao cinema.
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