Crítica | Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes (The Hunger Games: The Ballad of Songbirds and Snakes) [2023]

Nota do filme:

“Qual o objetivo dos jogos vorazes?”

Dr. Volumnia Gaul

Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes como um prelúdio – ou prequel – para uma das sagas mais conhecidas da modernidade. Acompanhamos, então, a juventude e eventual ascensão de Coriolanus Snow (Tom Blyth), desde os tempos da revolução até a 10ª edição dos Jogos Vorazes, quando problemas começaram a surgir no horizonte.

Em que pese a (desastrosa) decisão de dividir o último livro em dois filmes – algo que até Francis Lawrence, diretor dos três últimos longas da franquia se arrepende –, fato é que a saga de Suzanne Collins é uma das adaptações literárias mais bem sucedida de todos os tempos. É natural, portanto, que permaneça um interesse nesse mundo por ela criado e, tendo em vista o foco das últimas histórias, não é estranho que, dessa vez, foque no antagonista.

A despeito do antagonismo, porém, há paralelos interessantes que podem ser traçados entre Coriolanus e Katniss: (i) a perda de sua figura paterna e consequente necessidade de ocupar esse papel; (ii) a pobreza; (iii) a importância dada a como outros residentes da Capital lhes veem; e (iv) como viram, na manipulação de outro, uma possível saída para a sua situação atual. É interessante perceber, então, como ele pode muito bem funcionar como uma versão corrompida da protagonista original.

São detalhes como esse que reforçam que A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes, provavelmente, foi mais do que a mera revitalização da franquia por questões financeiras. Isto é, a parte monetária, certamente, influenciou a mera criação do livre e subsequente adaptação, mas, parece não ter sido o único pensamento na mente de Suzanne Collins.

Retornando ao filme, tem-se que a construção de Lucy Gray Baird (Rachel Zegler) foi tão importante – alguns dirão que até mais – que a de Coriolanus. Isto porque, ao contrário do protagonista, apenas foi introduzida neste momento, não gozando, portanto, de caracterização prévia.

Felizmente, Rachel Zegler é bastante feliz na sua interpretação, trazendo vida a alguém que o espectador jamais está 100% certo sobre qual o objetivo final (no bom sentido). Não se discute, aqui, o livro, mas, no longa-metragem, é impossível ter certeza se o seu relacionamento com Snow é genuíno ou tão somente um ato que interpretou com o objetivo de sobreviver aos Jogos. Dessa forma, se o forte de Katniss era o aspecto de sobrevivência, penando na interação com o público, aqui temos o seu extremo oposto.

O contexto de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes favorece a sua personagem. Isto porque, aqui, temos uma Panem que ainda não se recuperou totalmente da última rebelião, com Jogos Vorazes que ainda engatinham em seu objetivo. Pouco desenvolvidos, mais se assemelham a uma batalha tradicional no coliseu, com pouca inventividade e interesse do público. É nesse cenário que Coriolanus vê a oportunindade de transformá-los no evento grandioso e com requintes de reality shows que conhecemos na saga original. Tudo, é claro, para seu próprio benefício.

Nesse sentido, a relação entre ambos é um dos pontos altos do filme. Temos uma dinâmica na qual o controle é constantemente alterado, de forma que sempre há dúvida sobre quem está no “comando”. Ao mesmo tempo em que os dois lidam com seus outros adversários: (i) para Lucy Gray Baird, os outros tributos, personificados em Coral (Mackenzie Lansing); e (ii) para Snow, o reitor Casca Highbottom (Peter Dinklage) e a Dr. Volumnia Gaul (Viola Davis).

O paralelo traçado entre Snow/Katniss e Lucy Gray Barid/Katniss fornece um novo contexto para todas as interações entre o vilão e a protagonista da saga principal, em especial nos longa-metragens, com as ótimas interpretações de Jennifer Lawrence e Donald Sutherland. Coriolanus não apenas vê uma versão invertida de uma mulher por quem nutria (possivelmente) algum sentimento, mas, também, uma versão invertida de si mesmo. Possivelmente, alguém que ele poderia ter sido, fossem as circunstâncias diferentes.

Alterando o foco para os aspectos técnicos, há que se elogiar as decisões do diretor e do departamento de  figurinos, uma vez que são muito felizes em demonstrar essa dualidade pobreza/nobreza de seu protagonista. Suas roupas, em que pese a elegância, nunca lhe caem perfeitamente bem, estando levemente justas ou levemente folgadas, o que demonstra serem de segunda mão.

Dessa forma, transmite-se à audiência (i) a antiga riqueza da família Snow; (ii) a sua atual situação financeira; e (iii) o quão absortos em seus próprios pensamentos são os “amigos” de Coriolanus, que sequer conseguem perceber detalhes tão evidentes. São escolhas assim que demonstram que os envolvidos, de fato, pensaram em como demonstrar visualmente certos detalhes, utilizando-se das vantagens de um meio audiovisual em oposição a um meio literário.

O roteiro, ainda, aproveita-se de Sejanus Plint (Josh Andrés Rivera), único amigo verdadeiro de Snow, para lhe apresentar mais um contraste, sendo basicamente a sua versão invertida. Isto porque enquanto o protagonista possui nobreza, mas, carece riqueza, Sejanus possui riqueza, mas, carece nobreza. É sempre interessante, então, quando os dois são contrapostos, uma vez que, por possuírem um background tão oposto, possuem visões totalmente diferentes quanto ao modelo de mundo atual.

O mero conceito de jogos vorazes é repulsivo à Plinth, uma vez que não nasceu na Capital, mas, tão somente, “comprou” o seu lugar junto aos vencedores da guerra. Não possui, então, uma necessidade de se sentir nobre, jamais hesitando em se portar de modo contrário ao modelo imposto. Contudo, somente fazê-lo por conta do seu privilégio financeiro, que lhe prove proteção contra qualquer retaliação por parte do governo.

A bem da verdade, Coriolanus não pode se dar ao luxo de perder o seu status de nobreza, não apenas por vaidade, mas, também, pela sobrevivência da sua família. Ao tentar substituir sua falecida figura paterna, vê-se como natural provedor de sua avó e prima. A primeira, idosa e debilitada, demanda cuidado e o status da família é a única coisa que permite que ele, no futuro, possa prover uma vida financeiramente melhor às duas.

Dividido em capítulos, o ponto fraco de A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes definitivamente fica no seu terceiro (e último) capítulo. Isto porque, uma vez que já sabemos como será o final do protagonista, tendo em vista se tratar de um prequel, é impossível ao roteiro surpreender os espectadores.

Ao mesmo tempo, há uma pressa que, antes, não se via. De maneira drástica, todo a película parece se mover muito mais rapidamente, para que todas as peças, no desfecho, estejam no seu devido lugar. Por fim, a resolução meramente “acontece”, de modo que, ironicamente, se há algum filme da franquia que se beneficiaria de uma divisão em duas partes, seria esse.

Não se sabe, hoje, se haverá algo novo na saga, todavia, decerto é uma possibilidade, em especial considerando o seu encerramento. O público já provou, porém, que há sim uma demanda a histórias envolvendo o universo de Jogos Vorazes, de modo que não seria estranho se Suzanne Collins assim o fizesse.

Sendo assim, A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes é competente em dar continuidade ao legado da série original. Ao focar em uma versão corrompida da protagonista original, bem como no seu completo oposto, é possível ampliar o horizonte desse universo, demonstrando maior complexidade. A conclusão apressada, infelizmente, acaba por prejudicar o produto final. Nada, contudo, que uma maior expansão da mitologia de Jogos Vorazes não possa reparar.