Cinematologia na Copa – Dinamarca

Grata surpresa para esta copa, a nórdica solitária aposta em decisivas arrancadas e jogadas alternadas para derrubar os grandes favoritos. No entanto, tirar os guerreiros de Copenhague de seu país para jogar bola é quase um convite. Ainda com tempo e lugar decisivos como Rússia em 2018, o Reino da Dinamarca passa longe de ser mencionado pelo seu jeito de levantar vitórias improváveis com técnicas ousadas. As duas coisas, no entanto, mergulham direto no fazer audiovisual do país. Com estética sempre meticulosa e elementos experimentais sempre bem aplicados, o país aposta na inovação em campo e nas telonas.

A conhecida ”dinamáquina” nos gramados de 1990, estuda a mesma estratégia há tempos para o cinema local. Tendo exemplares medidas políticas de incentivo ao cinema criativo nacional, o experimental na terra do Lego é um mero esforço diário de tornar comum o que na realidade é só bem feito. Foi sendo germinado em uma cultura de cinema muito única na década de 90, que em 13 de março de 1995, Lars von Trier e Thomas Vinterberg, ambos experimentalistas do novo cinema dinamarquês da época, conceberam as esboçadas regras do Dogma 95. Dez — irônicos — mandamentos completavam uma lista que, em suma, abolia o uso de qualquer violência ao visual de um filme que o destratasse ou distanciasse do realismo. Os filmes produzidos para o visionado carimbo final em seu projeto dispensariam coisas como truques analógicos ou digitais de luz, estabilização de filmagem  e nomes finais que creditassem o diretor da obra.

Foi tentando — por total opção e preferência nacional — frustrar a supervalorização de filmes comerciais do exterior, que os dinamarqueses cultivaram em sua cultura o costume de ir ao cinema com companhia, desfrutar de lançamentos nacionais tanto quanto os de origem estrangeira e valorizar sem patriotismo estas mesmas obras. A inegável qualidade e percepção da mão dinamarquesa lança nomes como Tobias Lindholm Susanne Bier, que carimbam com força a bandeira nacional no cenário internacional. De dentro para fora, ao jeito dinamarquês.

 

Este texto faz parte de um especial da Cinematologia para a Copa do Mundo de 2018. Para conhecer um pouco mais o cinema de alguns dos países participantes, indicaremos produções, atores e diretores que fizeram história dentro e fora do território nacional.

 

Mads Mikkelsen

É comprovadamente impossível destacar só um grande contribuidor dinamarquês para o legado do cinema contemporâneo. Para estar nesta posição do texto como a única pessoa presente a representar o Reino da Dinamarca, Mads Dittmann Mikkelsen tem motivos muito específicos. As constantes aparições de Mikkelsen aliadas a grandes e bem lapidadas produções do cinema contemporâneo não são uma coincidência. É possivelmente o ator dinamarquês mais influente da atualidade. Parte disso se deve ao talento com que carrega produções de diferentes nacionalidades com incisivas interpretações e uma incrível adaptabilidade.

Nascido em 22 de novembro de 1965, cresceu na efervescência da estética no século XX, em meio aos Beatles e a TV colorida. O trato observativo de Mikkelsen para produções estrangeiras providenciou desde cedo atalhos para o artista que, ainda que sempre seguisse a deixa das grandes produções nacionais, seria lançado ao mundo por filmes mais comerciais, como Cassino Royale (2006) e Rei Arthur (2004).

Ainda que estampar a cultura de cinema dinamarquesa não seja o combustível do ator, tampouco é o de qualquer consagrador diretor no século XXI. Sua indireta intervenção na história vem de quando a Dinamarca ainda tratava de se encontrar no já aclamado cenário hollywoodiano internacional. Com a mesma referência do lugar que lembra uma escola e estilística, buscava-se encontrar um referencial único no aplique das obras dinamarquesas. Não demorou para que na primeira arrancada dos anos 2000, Los Angeles tivesse o seu letreiro, enquanto Copenhaguen tivesse Mads Mikkelsen sentado nele.

 

Festa de Família (1998)

O drama sobre um grupo de pessoas que se reúnem em um país imponente para um aniversário de 60 anos foi feito sob um rigoroso conjunto de regras do Dogma 95, foi elaborado por um quarteto de diretores dinamarqueses, incluindo Vinterberg e von Trier. Os “votos de castidade”, como os chamam, incluem o uso de apenas câmeras de mão à luz disponível. Supondo que os telespectadores não fiquem terminalmente enjoados com a cinematografia  — um artifício parecido com a visão dos acontecimentos de um bluebottle maluco  — Festa de Família é uma feroz dissecação da vida familiar.

Começa assim que os convidados se preparam para o jantar, misturando cenas de conversa jogada fora, preparativos frenéticos na cozinha, sexo rápido e a descoberta do bilhete de suicídio de uma irmã já morta. O aniversariante é Helge (Moritzen) e o foco principal está em seus três filhos, o inescrutável Christian (Thomsen), o rude Michael (Larsen) e a emocional Helene (Paprika Steen). Suas histórias se desenrolam com a versatilidade de uma forma sombria e cômica, até que Christian solta uma bomba e a trama gira com um roteiro direto e ácido.

Vinterberg não adota nenhuma posição moral óbvia sobre o racismo, a brutalidade e a auto-ilusão dos convidados, mas apenas vê-los em ação semelhante a um documentário será suficiente para desestabilizar a maioria dos espectadores à medida que ricocheteia entre explosões desagradáveis e calmarias estranhamente confortáveis. Embora quase não exista um traço agradável em exibição e Vinterberg corteje controvérsia com sua conclusão, não há como negar que algumas das restrições do D-95 injetam urgência e surpresa no que poderia ter sido um assunto tediosamente estático. Algo que só o experimental pode causar com bons sustos vindos de uma estrutura estranha.

Entre o Bem e o Mal (2005)

Há uma grande chance de você já ter ouvido falar ou mesmo assistido o longa de 2005 Entre o Bem e o Mal, de Thomas Jensen. O que acontece aqui é o fenômeno dos filmes comuns, que são assistidos em algum momento da vida até mesmo por acidente. Seja no trabalho, em casa ou na escola ou em uma aula muito específica da faculdade, ele o atingiu ou ainda atingirá. A história é o grande motivo disso. Sendo roupa perfeita para um dos maiores conflitos sociais do século XXI, a tolerância aqui é inexistente, pois sobrevive no que o roteiro lhe dá através de diálogos que se não forem lembrados, se perdem — uma pena.

O filme engrena com Adam (Ulrich Thomsen) é um neonazista que acabara de ser solto da prisão para que prestasse serviço comunitário, ainda que com algum desdém da oportunidade. Ivan (Madds Mikkelsen) estende a ele a oportunidade de aprender através de uma tímida mensagem religiosa o verdadeiro significado de viver entre os homens, sobretudo, existir. Com alguns diálogos poderosos e outros nem tanto, o filme se balança com o desafio de Adam de criar um bolo de ingredientes retirados da árvore em frente a igreja em que a história se desenvolve na maior parte. Com grandes adversidades, a tarefa se torna algo realmente desafiador, mas estruturado para uma trama com uma grande moral final.

Entre o Bem e o Mal é um dos filmes da década de 2000 que amplia bem o cinema dinamarquês moderno. Se destacando principalmente no cenário e nos diálogos (e na própria conversação de ambos), sua capacidade de introduzir o mais leigo aos elementos visuais do cinema nacional, é uma mão na roda. Se por um acidente tenha lhe passado em branco a oportunidade de contemplar seus 90 minutos, podemos fingir que o cinema dinamarquês visto hoje começa lentamente por aqui.