Em 2008 foi lançado, nos cinemas, Homem de Ferro, filme que ficaria conhecido por introduzir o maior Universo Cinematográfico da história, que, até o momento, dura onze anos e nos trouxe um total de vinte e dois longas metragens. Com a estreia de Capitão América – O Primeiro Vingador, em 2011, fomos apresentados a um dos personagens mais icônicos da Marvel: Steve Rogers, jovem residente do Brooklyn que desejava ajudar o seu país a vencer a Segunda Guerra Mundial.
Com uma moral inabalável e disposto a dar a sua vida pela causa que considera justa, Rogers se sacrificou para impedir um ataque às principais cidades do mundo, impedindo a vitória da organização HIDRA, que tentatava, por meio da Guerra, alcançar o controle mundial. Encontrado congelado após setenta anos, assumiu um papel de liderança do time de heróis em The Avengers – Os Vingadores.
Após tantos anos, em Vingadores – Ultimato, a audiência foi apresentada a um dos maiores desenvolvimentos do personagem – um que, certamente, os fãs que acompanham os quadrinhos esperam desde de Vingadores – Era de Ultron, em 2015. Em seu combate contra Thanos, o Super Soldado se mostra digno ao levantar o Martelo Mjölnir, um acontecimento que remete ao encanto feito por Odin, ainda em Thor: “Quem quer que possua este martelo, se ele for digno, possuirá o poder de Thor”.
O feito repercutiu fora de tela, abrindo um debate para, afinal, o que teria mudado desde Ultron, quando Rogers pôde apenas mover o martelo levemente, até a conclusão da saga, quando conseguiu manuseá-lo livremente. Kevin Feige, produtor e presidente do Marvel Studios se manifestou afirmando que o personagem “sempre foi digno e estava sendo educado na Era de Ultron”.
Em que pese a afirmação, ela de modo algum contribui à narrativa, vez que simplesmente paralisa a evolução do personagem e, pior, sequer é condizente com a imagem em tela. A discussão, portanto, permanece, sendo o presente texto meramente opinativo. Nesse sentido, aproveita-se o conhecido trabalho de Roland Barthes acerca de interpretação literária – o qual se aplica a roteiros e, ainda, outras obras de arte por analogia –, que busca se distinguir da intenção do autor e focar na obra em si e o que pode representar [1].
“Haja o que houver amanhã, prometa-me uma coisa: que continuará sendo quem é. Não um soldado perfeito, mas um homem bom.”
Abraham Erskine
Em seu primeiro longa, Steve Rogers [2] se mostra um rapaz com um ideal puro e nobre. Jovem, ainda entende o mundo como um lugar simples, sendo perfeitamente capaz de distinguir os “mocinhos” dos “vilões”. Ao servir de experimento para Abraham Erskine, pela primeira vez em sua vida tem um físico que coaduna com a sua mentalidade. Nesse momento, seu desejo por um planeta mais justo pode, finalmente, deixar de ser mero devaneio. Ao sacrificar a própria vida, assegura a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial e, ao menos em tese, alcança seu objetivo.
Entretanto, sua extrema vitalidade, obra do soro do Super Soldado, preserva o seu corpo no gelo, permitindo que, setenta anos mais tarde, seja despertado de seu sono. Acorda em 2012, em uma América muito mais complicada que aquela que havia deixado. De repente, a sua realidade preto/branco parecia muito mais cinzenta do que deveria.
Entender como funciona a moral interna do personagem é indispensável para compreender, afinal, como alguém pode se tornar digno de levantar o poderoso Mjölnir. Afinal, no MCU, até o momento, apenas três personagens conseguiram o feito [3]: Thor, Visão e Steve Rogers. Analisando-os separadamente, percebe-se que o seu dono contou com um longa inteiro para se tornar digno e; o andróide é fruto da Joia da Mente, o que sugere uma pureza inata ao seu caráter. Já mudança do Capitão pode ser determinada por dois pontos chave: solução de conflitos internos e a aceitação do fim do dever.
Conflito Interno e “Moral Perfeita”
Em Capitão América 2 – O Soldado Invernal, o protagonista descobre que Bucky, seu melhor amigo, supostamente morto em batalha, estava sendo usado pela HIDRA como assassino profissional, responsável por execuções que mudaram o rumo da história. No filme, em seu rápido encontro com Armin Zola, há um easter egg que será fundamental no futuro da saga:
“Durante 70 anos a HIDRA, secretamente, alimentou crises, lucrou com guerras…e quando a história não cooperou…a história foi mudada.”
Armin Zola
Esse foi o primeiro embate interno que o personagem teve que suportar no MCU. O conhecimento de que seu melhor amigo havia sido responsável, ainda que sob coerção, pela morte dos pais de Tony Stark é, certamente, um dos impedimentos à sua “dignidade”. Nesse sentido, há quem diga que mentir não o torna, necessariamente, indigno, e tal entendimento está, em tese, correto. Ser digno não significa ser uma entidade perfeita, do contrário o próprio Thor não poderia manusear Mjölnir. Todavia, por óbvio, subsiste uma ruptura em seu caráter, eis que não se trata de uma simples mentira, mas sim de aspecto que Steve sabe ter sido determinante na vida de Tony.
A resolução para o conflito ocorre apenas em Capitão América – Guerra Civil, – portanto, posterior à Ultron – quando a verdade finalmente é revelada:
“Não me enrola, Rogers. Você sabia?”
Tony Stark
Há culpa em Steve, que reconhece que a sua relutância em revelar a verdade não decorreu de uma necessidade de proteger Tony, mas sim a si próprio:
“Acho que pensei que não contando sobre seus pais estaria poupando você, mas agora vejo que eu estava poupando a mim mesmo. E peço desculpas. Tomara que um dia você possa entender. (…) Então, haja o que houver, eu prometo que se precisar de nós – se precisar de mim – eu estarei lá”
Steve Rogers
Felizmente, superado o conflito, o Capitão está mais próximo de conseguir manusear Mjölnir. Ainda, destaca-se que, por mais que haja um aprofundamento da distância entre Tony e Steve em Vingadores – Ultimato, não apenas ela é resolvida ainda no mesmo filme – por meio da devolução do escudo a Steve –, como se acredita que não teria interferência, vez a superação ao conflito é ato íntimo do personagem. Nesse sentido, parte de seu arco é, também, aceitar que pode cometer erros, devendo apenas tentar saná-los, caso ocorram [4].
Fim do Dever e Vida Pessoal
Resta, porém, a aceitação do fim do seu dever, temática que vem sendo trabalhada desde Capitão América 2 – Soldado Invernal. Após a invasão a Nova York por Loki, o personagem passa a integrar a S.H.I.E.L.D., em uma concepção equivocada de que deve sempre estar em combate:
“Até onde me lembro, eu sempre quis fazer o que era certo. Acho que agora não sei mais o que é isso. E achei que poderia simplesmente voltar a seguir ordens. Servir. Mas não é a mesma coisa.”
Steve Rogers
Percebe-se a relutância do herói em aceitar que cumpriu com o seu dever, a dificuldade em conseguir viver sem uma guerra. Há um peso no personagem por ser um homem fora de seu tempo, alguém com uma moral inabalável em um mundo moralmente relativizado.
Em Vingadores – Era de Ultron, há dois diálogos que exemplificam, de maneira sucinta, a questão:
“Não é essa a missão? Não é por isso que lutamos? Para acabarmos com as lutas? Para que possamos voltar para casa?!”
Tony Stark
“Capitão América. O homem santificado. Fingindo que consegue viver sem uma guerra”
Ultron
Mesmo cinco anos após Thanos eliminar metade da população de maneira irreversível – ao menos segundo o conhecimento do Capitão à época –, o personagem não consegue seguir adiante:
“Sabe que digo para todo mundo superar e crescer. Alguns conseguem. Mas nós não.”
Steve Rogers
Steve Rogers precisa de uma guerra para lutar, e essa motivação o torna indigno. Aquilo que ele entende como seu dever não permite que viva a sua própria vida. Ao contrário de Tony Stark, cujo arco requer maior abnegação e preocupação com o bem comum, o personagem precisa parar de colocar o peso do mundo sob as suas costas. Ironicamente, a resolução de ambos se dá no mesmo segmento, na volta aos anos 70, em Vingadores – Ultimato.
Enquanto Tony conversa com o seu pai, superando o peso que o segurava e o impedia de se tornar alguém naturalmente mais altruísta, Steve se vê diante de Peggy Carter, separados por uma simples divisória. Em uma cena simples, mas poderosa, a dualidade dever/amor é representada pelo vidro que os separa. Ali, ocorre a resolução do personagem.
Dessa forma, por mais que, ao final coloque, novamente, o dever acima de seus desejos, o conflito já está sanado. Há, agora, um modo de, cumprida a sua missão, viver a vida que sempre deveria ter vivido. A manifestação externa acerca da decisão, porém, vem apenas no último diálogo do longa:
“Bem, depois que devolvi as Joias, eu pensei…talvez eu tente um pouco dessa vida que Tony vinha me dizendo para ter”
Steve Rogers
Cumprida a sua missão, não havia porquê continuar com o combate. Finalmente a sua luta acabou e, assim, passou o escudo adiante, tendo não apenas cumprido com o seu dever, mas também vivido uma vida plena. Ao encontrar equilíbrio, houve uma notável evolução do personagem, perfeitamente demonstrado em, talvez, o momento mais catártico de todo o Universo Cinematográfico Marvel: o momento em que manuseia Mjölnir.
[1] Tal interpretação se faz bastante relevante nos dias atuais, vez que, com a internet, o(a) autor(a) pode, com um tweet, acrescentar detalhes à história que pouco ou nada ajudam a narrativa originalmente contada, quando não a prejudicam.
[2] Há uma discussão interessante sobre se o Steve Rogers de 1945 seria digno de empunhar o Martelo Mjölnir. Por mais que seja, de fato, puro, a ausência de conflito e experiências parece ser um fator adversário. Do contrário, o leque não seria tão restritivo.
[3] Entende-se, aqui, “levantar” como “empunhar”. Dessa forma, desconsidera-se Hela, em Thor – Ragnarok, eis que não empunha o martelo, mas sim o para – talvez, inclusive, por possuir força que rivaliza com Odin, ao menos no MCU – e, sobrepujando o seu poder, o destrói. Odin também parece capaz de manuseá-lo, mas, considerando ser ele o responsável pelo encantamento, preferiu-se retirá-lo da lista.
[4] Essa interpretação conversa, inclusive, com o arco de Thor que, após o diálogo com a sua mãe, se descobre digno o bastante para manejar Mjölnir, por mais que tenha falhado com o seu dever contra Thanos.
Carioca, advogado e apaixonado por cinema. Busco compartilhar um pouco desse sentimento.