Bela Vingança (Promising Young Woman) [2021]

“Mas eu sou um cara legal”

Múltiplos

Nota do Filme:

Bela Vingança acompanha Cassandra (Carey Mulligan) que, após um acontecimento traumático em seu passado, abandona o curso de medicina e se torna barista em uma pequena cafeteria. À noite, porém, sai às ruas se fingindo bêbada de modo a se vingar de homens que, aproveitando-se da sua aparente embriaguez, tentam iniciar atos sexuais. 

Há poucas premissas tão instigantes quanto as acima indicadas. Nesse sentido, se por um lado a violência – não limitada apenas à sexual – contra a mulher, infelizmente, está longe de ser um problema recente, certo é que o tema nunca esteve tão em debate quanto atualmente, o que naturalmente se reflete no Cinema em si, com obras abordando o tema sob diversas óticas – cita-se, apenas a título exemplificativo, Jogo Perigoso, Swallow e Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre. Com isso em mente, Emerald Fennell marca a sua estreia em longa metragens como diretora e roteirista, nos trazendo uma narrativa densa e, mais importante, relevante, tal qual as citadas anteriormente.

Bela Vingança busca, dessa maneira, instigar a sua audiência, a começar pelo seu próprio título – no original, Promising Young Woman – que diretamente referencia o caso de People v. Turner, no qual o acusado, Brock Turner, de 19 anos, foi condenado por três acusações de agressão sexual face à uma mulher inconsciente. Isto porque, a despeito das circunstâncias, muitos ainda se referiam ao criminoso como um promising young man (jovem promissor, em tradução livre).

Com isso em mente, percebe-se a acidez da narrativa ao tratar a permissividade da sociedade, de um modo geral, a atos do gênero cometidos por homens contra mulheres, e é essa percepção e ligação com a realidade que cria uma conexão entre a audiência e o texto do filme. Isto porque, por mais que os motivos de Cassandra apenas sejam trabalhados após 30 minutos de duração, experiências reais dos espectadores – seja por notícias seja por, infelizmente, vivê-las – complementam as lacunas. Não há, assim, sequer uma tentativa de plot twist com a revelação, vez que Fennell está plenamente ciente do meio no qual está inserida.

A diretora/roteirista, contudo, não se limita à caricaturas fáceis de abusadores, não raramente sendo representadas como figuras excluídas, esgueirando-se por becos escuros à procura de uma vítima. Ao contrário, são parte integrante da sociedade, com amigos, vida profissional e, também, romântica/sexual.

Fennell se utiliza do conceito “the nice guy” (o cara legal, em tradução livre), um arquétipo que se subvide em diversas categorias: ele se dispõe a proteger uma mulher em situação de vulnerabilidade (bêbada ao ponto de não conseguir consentir), contudo, apenas com o interesse de assegurar o “prêmio” para si; ele não é agressivo, ele “entende” o sexo feminino e é “desconstruído”, contudo, crê que isso lhe dá direito à recompensas sexuais e não lida bem com rejeições; ele jamais comete qualquer ato de abuso e/ou violência contra mulheres, contudo, é inexplicavelmente passivo quanto a atos do gênero cometidos por conhecidos, dentre outros.

Justamente por isso, Emerald é bem sucedida na difícil tarefa de fazer com que seus espectadores homens sejam forçados a confrontar o quanto se veem em tela. Isto é, se obras do gênero, via de regra, tendem a dialogar mais com mulheres, por uma questão de experiência com a situação – às vezes, ainda, fazendo com que reconheçam que já passaram e/ou estão em situações semelhantes no momento –, Bela Vingança ressoa com ambos, mas de maneiras evidentemente diferentes. Trata-se, portanto, da subversão de um arquétipo conhecido (the nice guy) e desconstrução do estereótipo associado a este tipo de comportamento.

Ademais, toda a temática narrativa acima descrita é acompanhada por um primor técnico invejável. Carey Mulligan, como lhe é habitual, entrega uma performance forte e convincente, atraindo naturalmente a curiosidade e empatia da audiência. É acompanhada por ótimo elenco de suporte, no qual se destaca Bo Burnham, mais conhecido por seus papéis cômicos. Ainda, o constante uso de cores mais fortes, de modo a evocar algo quase infantilizado que, por natureza, nos remeteria à inocência, parece indicar uma triste ironia justamente quanto à ausência desta inocência da personagem principal. 

Há, porém, pontos divisíveis no decorrer do filme. Se a jornada de Cassandra é uma premissa naturalmente instigante, o modo como se dá pode desagradar a algumas pessoas, ironicamente, por se encontrar em um estranho meio termo entre violento demais/não violento o bastante. Possivelmente um receio por parte da diretora/roteirista – ou estúdio – em tornar sua protagonista pouco simpática aos espectadores, mas são apenas conjecturas. Neste mesmo sentido, ainda, deve-se destacar o final, excepcional para alguns, desagradável para outros, mas certamente agridoce para todos.

Portanto, Bela Vingança se revela não apenas como uma ótima estreia no cenário de longa metragens para Emerald Fennell como, também, um dos filmes mais interessantes de 2020/2021. Por mais que conte com algumas inconsistências quanto a seu ritmo, em especial no segundo ato, a obra jamais deixa de impressionar sua audiência. Ao mesmo tempo, por mais que determinadas escolhas sejam polarizadoras, tal fator apenas contribui à memorabilidade da narrativa. Por fim, seu encerramento impactante – para um lado ou para o outro – faz com que debates a seu respeito sejam inevitáveis.