WALL-E – O que é ser Humano

WALL·E é, sem sombra de dúvidas, um dos filmes mais únicos da Pixar. Lançado em 2008, conta a história de uma Terra abandonada pelos humanos. No planeta permanece apenas WALL·E (Carregador de Carga e Alocação de Resíduos – Terra, em português), um robô programado para limpar a área, missão essa que, ao menos a princípio, parece impossível. Ao encontrar EVE (Avaliadora de Vegetação Extraterrestre, em português), robô enviado pelo Axiom (cruzeiro interespacial no qual os humanos vivem de forma quase programada), terá um importante papel na reconstrução da humanidade.

A Pixar conseguiu, ao longo dos anos, construir um império de animações que desafia o clássico entendimento de que filmes animados são “para crianças”. Nesse sentido, expande a sua base e mira não apenas em um público infantil mas, também, um público mais adulto que, com maior discernimento, percebe camadas mais profundas nas histórias. A título exemplificativo, é bom mencionar Procurando Nemo, do mesmo diretor, um conto sobre amadurecimento e parentalidade que, facilmente, rivaliza com grandes produções live-action.

WALL·E é um filme que conta tanto com visuais estonteantes, que em uma primeira meia hora quase sem diálogos consegue, com perfeição, transmitir os sentimentos necessários – cite-se, ainda, a dança no espaço entre os protagonistas, talvez a cena mais bela já feita pelo estúdio – como, também, nos traz diversas temáticas imprescindíveis não apenas na época na qual foi lançado como nos dias atuais. O presente texto, então, irá focar em um dos mais interessantes temas abordados: afinal, o que significa ser humano?

Segundo o longa, a resposta pode ser dividida em alguns pontos, sobre os quais iremos discorrer adiante.

Humanidade, Amor e Relações Interpessoais

Nosso primeiro contato no filme é com o pequeno WALL·E, deixado para trás com a sua diretriz: limpar o planeta. Contudo, desde o início percebemos que há algo de diferente no personagem. Ele é muito humano, por assim dizer. O pequeno robô coleta objetos, ouve música, assiste filmes antigos e mantém uma “amizade” com uma pequena barata. WALL·E é curioso, observa as estrelas à noite como se à procura de algo a mais. O conceito de amor, em especial, parece mexer com o personagem, conforme se percebe pelo ato de segurar as mãos, retratado no musical Alô, Dolly! que tanto assiste.

Certo é que a sua necessidade por conexões além daquelas para a qual fora programado move a trama adiante. Ao encontrar EVE busca, desesperadamente, um meio de se conectar com a personagem e, quando finalmente chegamos ao Axiom, um dos pontos centrais da narrativa se mostra: a necessidade de conexões interpessoais.

Explica-se que, no cruzeiro, humanos “evoluíram” ao ponto de poder abrir mãos de determinadas funções. A própria locomoção, tão importante no desenvolvimento da espécie, tornou-se desnecessária face à automação. Ocorre, porém, que esse fator se estendeu também às relações entre os passageiros. Isto porque, por mais que haja conexão entre tripulantes do Axiom, elas se dão estritamente por meio de telas, ainda que sejam relacionamentos possivelmente amorosos. Antes de se libertar, Mary comenta com uma conhecida:

“Todo encontro holográfico que eu tive foi um desastre virtual.”

Mary

Todavia, somos seres sociais. A humanidade requer uma intimidade que, por mais que tentemos, não pode ser substituída por meios virtuais. Segundo o próprio diretor e roteirista, inclusive, a redescoberta desse sentimento é ponto central da história:

“Percebi que o que eu queria mostrar com esses dois robôs programados era o desejo deles de tentar descobrir qual a razão de viver…foram precisos atos de amor irracional para meio que decobrirem ser contra o porquê foram construídos…eu percebi que é uma metáfora perfeita para a vida real. Nós criamos nossos hábitos, nossas rotinas e nossos padrões de comportamento, consciente ou inconscientemente para evitar viver. Para evitar ter que lidar com as partes complicadas. Para evitar ter relacionamentos com outras pessoas ou lidar com a pessoas ao nosso lado. É para isso que ficamos em nossos celulares e não tratamos um com o outro. Eu pensei ‘Essa é uma amplificação perfeita do objetivo do filme.’”

Andrew Stanton

Stanton, cristão, afirmou que entende o amor como o maior ensinamento de sua religião, motivo pelo qual quis projetar, em WALL·E, aquilo que considera mais importante. Há outros paralelos que podem ser traçados entre a religião e a narrativa, dentre eles destacamos a comparação entre o Axiom e a Arca de Noé e o próprio nome de EVE (Eva, em português), em uma alusão a Adão e Eva (ou Adam and Eve).

Nesse sentido, é interessante notar como Andrew conseguiu, já em 2008, transmitir um conto que se faz tão necessário na atualidade. Ao mesmo tempo, manteve-se fiel às suas crenças e conseguiu criar uma obra que diz muito sobre aquilo que considera mais importante à humanidade: o amor.

Individualidade face ao Coletivo

De qualquer forma, há mais camadas em WALL·E, uma delas diz respeito à necessidade de manutenção da sua individualidade. Isto porque, ainda que humanos sejam, em seu cerne, seres sociais e, portanto, demandem certo pensamento coletivo, a coletividade pela coletividade pode se mostrar tão prejudicial à humanidade quanto o individualismo desenfreado.

Explica-se que a chegada de WALL·E desafia o sistema instaurado no Axiom. Ao contrário de suas contrapartes robôs na nave, ele está livre de sua diretriz e, assim, move-se como bem entender, primeiro causando caos para, após, servir de inspiração. As suas necessidades individuais vão de encontro ao que se espera do ecossistema do local, o que de modo algum faz com que se conforme com a situação, muito pelo contrário.

Assim, no começo vemos humanos desprovidos de personalidade, vestindo-se iguais, guiados para o local indicado por suas poltronas. O longa, ao retratar os sobreviventes em sua rotina mecanizada, mostra que não há espaço para a individualidade, com o trajeto, literalmente, seguindo linhas fixas ao chão. A influência de WALL·E em John e Mary, porém, é imediata. Ao fazê-los ver um mundo além de suas telas – o que torna, inclusive, a história, um paralelo à Alegoria da Caverna de Platão – há, rapidamente, o desenvolvimento de suas respectivas personalidades.

Uma vez que o sistema do Axiom, controlado por AUTO, impedia a individualidade de se desenvolver,  questionamento ao próprio sistema era impossível. Foi necessária a intervenção de uma força externa para que a humanidade percebesse a necessidade de manter não apenas um coletivo, mas também o indivíduo.

A Liberdade de Evoluir, Escolher (e Errar) como Elemento Necessário

Por fim, no filme, a humanidade foi reduzida à uma sombra do que era. A automação e a facilidade tecnológica fez com que os habitantes do Axiom se tornassem versões bebês de si mesmos. Há um motivo para a escolha do design. Segundo Andrew Stanton:

“Foi quase como uma espécie de metáfora para ‘É hora de levantar e crescer’!’”

Andrew Stanton

A simbologia é evidente: ao abrir mão da própria autonomia, os sobreviventes se condenaram à eterna infância. Sem a necessidade de crescimento, ele se tornou supérfluo. Há um termo acerca da situação: neotenia, a retenção, em animais, na idade adulta, de características típicas da sua forma jovem ou larval. Dessa forma, em decorrência da falta de uso, houve um subdesenvolvimento de determinadas características. Por tal motivo, o simples ato do Capitão de se levantar e ficar em pé tão épico.

A escolha de música, por sinal, não poderia ser mais acertada. O paralelo entre o “Alvorecer do Homem”, do clássico 2001 – Uma Odisséia no Espaço[1] é extremamente apropriado. Ambos demonstram importantes passos no desenvolvimento da humanidade, cada qual ao seu modo e, também, proporção.

A cena serve para retratar a necessidade de evolução do ser humano, que só pode ocorrer em um ambiente no qual há liberdade para tal. Um ambiente no qual não há a possibilidade de escolhas é um ambiente no qual não há a manutenção da nossa própria condição de humanidade.

Tão importante quanto escolher certo, porém, é escolher errado. A programação de AUTO, por mais fria que possa parecer, iria, sem problemas, assegurar a sobrevivência da humanidade. Fato é que retornar à Terra é uma jogada arriscada, com forte probabilidade de fracasso. A permanência no Axiom, todavia, mostra-se uma certeza de manutenção da raça humana. Sobreviver, porém, não é o bastante para seres que devem sempre evoluir. Dessa forma, por mais que por vezes sejamos impelidos, por desejo, a caminho que possam ser considerados equivocados, faz parte de nossa natureza.

Assim, o filme demonstra que a liberdade para controlar nosso próprio destino, por pior que sejam nossas escolhas, é fator imprescindível para a nossa humanidade. A liberdade para errar faz parte do nosso amadurecimento como espécie.

Felizmente, contudo, a obra demonstra que a tentativa foi bem sucedida. Os créditos finais apresentam uma montagem da história da raça humana após retornar à Terra. As pinturas clássicas das cavernas progridem às típicas egípcias, gregas, romanas, renascentistas até certos impressionistas, como Vincent van Gogh. Por fim, as imagens evoluem ao estilo clássico dos primeiros jogos de computador.

Dessa maneira, WALL·E traz não apenas um estudo sobre a própria humanidade como, também, uma mensagem esperançosa para o futuro. A despeito de um cenário inicialmente aterrador, a crença de que a humanidade pode superar empecilhos tidos como impossíveis permeia a narrativa do começo ao fim.

[1] Essa não é a única referência ao clássico de Kubrick. A própria fisionomia de AUTO, piloto automático do Axiom, é claramente inspirada em HAL 9000, inteligência artificial presente na segunda seção de 2001 – Uma Odisséia no Espaço.