#VIOLANOBRASIL: Uma aula sobre negritude e cultura

“Eu estou no meu mundo!” É assim que a atriz e produtora Viola Davis descreve a emocionante jornada que foi protagonizar o longa-metragem A Mulher Rei, que resgata o legado das Agojies, guerreiras de uma unidade militar que dedicavam suas vidas a proteger o reino africano de Daomé (região onde fica o Benim) nos anos 1800, século 19. Ainda que já tenha alcançado um lugar de sucesso no tropo hollywoodiano, Davis afirma que encontrou a validação da sua ancestralidade e individualidade enquanto mulher negra retinta que sempre almejou na indústria nas palavras e realidade da sua personagem, a general Nanisca. “Eu tenho uma personagem com a qual, de alguma forma, consigo usar a minha luz, que sou eu; é a Viola. A razão para eu ter aceitado fazer o filme foi o roteiro da Dana Stevens. Ela escreveu palavras que abriram um mundo para mim e me fizeram sentir humanizada. Essa complexidade do que significa ser uma mulher negra é o que mais me moveu. No filme, estou me doando a vocês e, enfim, vocês me enxergam.”

Ao lado de atrizes como Thuso Mbedu e Lashana Lynch, Viola Davis resgata, em um elenco majoritariamente feminino e negro, uma história que sofreu com a cultura do colonialismo ocidental. É difícil encontrar as Agojie, conhecidas como Amazonas de Daomé – nome dado pelos franceses -, nos livros de histórias, a despeito dessas mulheres terem sido até hoje as únicas soldadas da linha de frente documentadas na história da guerra moderna. “As Agojie são as indesejadas, elas são as jogadas fora. Isso é difícil de ouvir. Elas eram recrutadas para o exército entre 8 e 14 anos e, se não aceitassem fazer parte, elas eram decapitadas. Eram consideradas pouco atraentes e indisciplinadas, e não podiam casar, ter filhos ou fazer sexo. Eram treinadas para engolir qualquer emoção. Mas quando você assiste ao filme você percebe que elas tinham muito orgulho em proteger o reino delas porque isso as dava propósito e valor. Para mim, esse é o início e o fim da história”, conta.

Viola Davis, por exemplo, teve como fonte somente um livro (“Amazons of Black Sparta, 2nd Edition: The Women Warriors of Dahomey”) e alguns poucos documentários sobre esse assunto e período tão necessários e espinhosos — o filme tem rendido calorosas discussões por revelar o pioneirismo do feminismo na região e a atuação do reino de Daomé no tráfico de escravos até meados de 1800. Leonard Wantchekon, economista da Universidade de Princeton e natural de Benin, foi um dos consultores do filme e está escrevendo um livro sobre o tema baseado em entrevistas que fez com descendentes de 50 guerreiras.

Mais do que retratar um pedaço da história, a produção, dirigida por Gina Prince-Bythewood e que levou sete anos para chegar aos cinemas, se coloca em um lugar de provocação, no qual deixa de ser um mero cinema de entretenimento para ser uma resposta à toda subjugação e apagamento liderado por uma indústria que se recusa a abandonar o seu racismo, misoginia e machismo. “O racismo teve um impacto muito grande em nós e criou um sistema muito poderoso, no qual a forma com a qual você é tratado é baseada no seu valor e mérito. As mulheres negras estão no fim dessa lista e isso é uma visão míope. Somos sempre colocadas em uma caixa. Se estamos mesmo comprometidos na tão falada “diversidade” e “inclusão”, e em acabar com o racismo, o primeiro passo é entender que não somos um dispositivo, não somos uma metáfora e que não tem como nós sermos um artista negro bem sucedido se não temos uma narrativa que mostre a nossa complexidade”, declara. 

Crítica | A Mulher Rei (The Woman King) [2022]

Ao trazer essas personagens negras complexas, nada maniqueístas e reconhecidas pelo destemor, independência e influência, A Mulher Rei mostra para outras mulheres que elas importam, são valiosas e merecedoras de reconhecimento, afeto e oportunidades em toda sua pluralidade humana. Mais do que isso: que elas podem estar a frente das suas próprias histórias. Trata-se, portanto, de uma representatividade qualitativa e não meramente quantitativa. “É importante para mulheres negras que elas vejam que podem liderar sucessos de bilheteria, que não precisam ter uma presença masculina. Não precisa nem ter uma presença branca, pode ser somente elas. Elas são o foco. Você sentar com essas mulheres negras por duas horas e ter interesse em suas histórias vai significar o mundo para nós.”, declara. 

Ganhadora de um Oscar, um Emmy Award e dois Tony Awards, Viola Davis entende o lugar de porta-voz que ocupa e tem como sua principal bandeira o combate à disparidade racial e de gênero. Ao lado do marido, tem usado a sua presença enquanto produtora e artista para elevar outros profissionais negros no mercado. Um artigo publicado pela McKinsey Company em parceria com BlackLight Collective, aponta que atores negros são protagonistas em somente 11 porcento dos papéis, sendo a maioria ainda delimitados a dilemas raciais. Por trás das câmeras, revela-se que menos de 6% dos escritores, produtores e diretores são negros. A cobrança da atriz foi o tom da coletiva de imprensa realizada no hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, e em dado momento Viola relembrou um dos seus lemas que ficou eternizado no seu discurso do Emmy de 2015: tudo o que separa uma mulher negra do sucesso é a oportunidade. “Nós não sermos vistos não é mais aceitável. Eu tenho que lutar por isso para que a minha vida tenha algum significado. Eu tenho valor tanto quanto Meryl Streep, Julianne Moore e tantas outras”, diz. 

Atenta e forte, Viola Davis, que ficou eternizada pelo seu trabalho como a manipuladora Annalise Keating, espera que A Mulher Rei seja, assim como foi na vida dela, um ponto de virada e faça com que o público e a indústria compreendam que o negro tem mais valor do que ser o personagem engraçadinho, a mãe que chora a morte de um filho ou uma advogada sem nome. O primeiro passo para mudar essa realidade é dar a essas histórias o mesmo tempo e dinheiro investido naquelas com protagonismo branco. “Você precisa investir dinheiro em filmes com pessoas como eu neles. Caso contrário, eles simplesmente não serão feitos. Se você pode investir seu dinheiro para ver a Scarlett Johansson, Angelina Jolie e outras mulheres empunhando espadas, batendo em homens e sendo invencíveis, então, você pode investir seu dinheiro para ver Mulher Rei. Às vezes as pessoas precisam ver para crer e com A Mulher Rei eles estão vendo, acreditando e sendo afetados por isso. Uma vez que você é afetado por algo assim, é difícil voltar atrás. E essa é a minha esperança!” 

Viola e o Brasil: um caso recente de amor 

Viola Davis e o Brasil já haviam flertado algumas vezes. No twitter, mensagens a convidando para conhecer o país não faltavam. Em 2019, quando Viola Davis encontrou Taís Araújo em Los Angeles, a ideia dela vir para o país ganhou força. No entanto, foi somente agora em 2022 que Viola veio conhecer as terras tupiniquins durante a agenda de divulgação do filme A Mulher Rei. A vinda para o Brasil se deu devido à histórica conexão entre a África e o Brasil, que foi a primeira parada dos navios negreiros com os mais de 12 milhões de africanos que foram escravizados e trazidos para cá e depois espalhados para as outras colônias. Para Viola Davis, o Brasil teve uma importância significativa na subversão da lógica de que há um estranhamento entre negros de localidades distintas, como americanos, caribenhos e brasileiros, evocando o sentimento de pertencimento. “Esse filme me mostrou a conexão que temos como pessoas negras e a contribuição do Brasil nisso é enorme. É importante que a gente não sinta que há um estranhamento entre nós. Todos viemos do mesmo lugar.”⠀

Amor e conexão não faltaram durante a estadia dela pelo Rio e ao lado do marido e produtor Julius Trennon, com quem divide a JuVee Productions, Viola Davis conheceu diversos pontos turísticos, entre eles o Cristo Redentor, o Barracão da Mangueira e alguns pontos que integram o tour pela Pequena África, reduto da herança africana no Centro carioca. E, como uma boa turista, Viola se apaixonou por todas as facetas do brasileiro. “Eu estou deslumbrada com a vida, com as profundidades da cultura, com a gentileza daqui. O amor que vocês têm pelo país é de tirar o fôlego. O seu amor por mim também. Eu gosto de ter amor porque eu sempre tive o oposto”, conta a atriz que participou de um jantar intimista na casa dos atores Lázaro Ramos e Zezé Motta. Em suas redes sociais, Davis fez questão de agradecer o carinho que recebeu no país e, principalmente, de ressaltar a importância dos encontros que teve com outras personalidades negras. “Meu coração e mente estão cheios com as suas ideias, visão, autenticidade e amor. Me fez lembrar o por que eu amo ser artista”, disse a atriz em uma das suas legendas. 

O último dia da atriz pela cidade foi marcado por grandes emoções e encontros no Teatro Copacabana Palace. Convidados, dentre eles o casal Taís Araújo e Lázaro Ramos, Elisa Lucinda, Camila e Antônio Pitanga, entre outros, assistiram ao filme e participaram de um debate com a atriz e o marido após a sessão. Extasiados, muitos não esconderam as lágrimas emocionadas por estarem na presença da Viola, por tudo o que ela representa, e pelo impacto que a história teve neles. A certeza é que, seja no Brasil ou em salas estrangeiras, A Mulher Rei e Viola Davis tem resgatado um sentimento muito caro aos negros, principalmente às jovens garotas: o amor e a coragem. Todos saíram um pouco mais guerreiros depois dessa jornada épica. 

A Mulher Rei já está em cartaz nos cinemas brasileiros.