Recomenda-se, como trilha sonora à leitura, Something in the Way
O texto contém spoilers.
Com a chegada do novo filme daquele que talvez seja o herói mais famoso da atualidade, muito se (re)pensa acerca do seu lugar como um representante do gênero, indo além da figura mascarada e chegando, também, ao seu alter ego. Isto porque a condição de Bruce Wayne como um poderoso empresário levanta questões sobre o melhor modo de, efetivamente, solucionar os problemas de Gotham.
Assim, indaga-se: o Batman perpetua o “Sistema”? Por mais simplista que possa parecer a questão, faz-se necessário estabelecer, afinal, pelo quê o Homem-Morcego luta e como busca chegar ao seu objetivo. É algo que, até o momento, nunca fora foco de um roteiro1 seu e, certo é que O Batman aborda, ainda que superficialmente, essa temática, abrindo as portas para que a sua sequência se aprofunde no tema.
O Batman não é um “filme de origem” no sentido clássico, tal qual longas como Homem de Ferro e Homem Aranha (2002) eram, de modo que não há sequências de cenas com o protagonista desenvolvendo/descobrindo suas habilidades. Contudo, é justo dizer que a sua resolução nesta obra afeta o modo como o herói é/será visto. Trata-se não da origem do mascarado em si, mas do seu renascimento perante um mundo mais complexo do que aparentava.
Isto porque o seu desenvolvimento é, justamente, perceber que tratar de sintomas sem direcionar maior atenção à doença é tão eficaz quanto secar gelo. Nesse caso, inclusive, pode ser até pior, com o protagonista percebendo, tarde demais, que suas ações serviram não como inspiração à sua cidade, mas sim ao principal vilão, o que faz com que chegue à conclusão de que a vingança que tanto persegue resultará em um mundo pior do que aquele no qual começou.
O herói nunca foi representado com tanta fúria. Até mesmo a versão recente e sanguinária de Ben Affleck/Zack Snyder tinha uma certa compostura que, de maneira proposital, carece à versão de Robert Pattinson/Matt Reeves. Trabalha-se, portanto, em cima de um indivíduo que acredita que tem o desejo de melhorar a sua cidade, mas age como se a tarefa fosse sua vendetta pessoal, o que acaba por danificar o suposto propósito original. Há uma autoenganação do personagem.
Nada exemplifica melhor esses sintomas do que a sua primeira aparição. A cena de luta na estação de trem demonstra, de maneira cabal, que o Batman não é visto como um herói. Aos espectadores, seu objetivo pode ter parecido ser salvar o civil, contudo, na realidade, era meramente utilizar os bandidos como válvula de escape para as frustrações decorrentes do assassinato de seus pais. O salvamento foi meio efeito colateral, não à toa a vítima implora, a ele, pela própria vida, temendo também ser alvo de sua ira. A pessoa salva tem medo do herói, mais do que dos vilões.
“Eu sou a Vingança“, fala chave da sequência, demonstra o modus operandi acima descrito. Ela necessariamente ocorre após o fato, jamais com a intenção de restabelecer o equilíbrio anterior ou fornecer paz ao lesado, mas sim de apaziguar a fúria do vingador. Com essa introdução, Reeves estabelece rapidamente o estado de espírito do personagem.
“Personagem”, destaca-se, no singular, porque, neste momento, não há alter-ego. Bruce Wayne – com exceção de poucas cenas – é inexistente nos quase 180 minutos da trama, sendo esse, acredita-se, o objetivo. O órfão se perdeu em seus demônios internos e não percebe como, efetivamente, pode fazer a diferença para Gotham.
Toda a estética do filme converge para esse ponto, sendo impossível não mencionar a “apresentação” do batmóvel. Com poucas alterações Reeves conseguiu transformar um simples carro em algo mais assustador que as últimas representações que eram, literalmente, tanques de guerra. O mero ronco do motor transmite à audiência a crença de que o próprio veículo está possuído, passando aos seus inimigos, então, uma sensação de verdadeiro terror. Não é surpresa, assim, descobrir que Christine, o Carro Assassino, do mestre do terror Stephen King, tenha servido de inspiração para o momento e design.
O (re)surgimento de Bruce, portanto, mostra-se um dos pontos chaves da película, tal qual a investigação criminal, justamente pelo herói precisar de um equilíbrio interno. O modo como o diretor opta por demonstrar isso é fazendo com que seja ele, e não o Batman, o responsável por salvar a primeira pessoa no longa. Explica-se.
Ao visitar o funeral do prefeito da cidade – demonstrando, desde já, que Wayne tem “entradas” em locais que seriam de difícil acesso ao Batman –, consegue identificar o Charada momentos antes de um carro invadir a igreja. Nesse rápido instante, Bruce tem uma escolha: perseguir o vilão – vingar-se – ou impedir que o filho do prefeito seja atropelado – salvar alguém. Nesse momento, o querer do personagem está em conflito com o seu dever e, ao escolher esse último, ele evolui.
Posteriormente, é o momento do Batman salvar alguém pela primeira vez, mais especificamente Selina Kyle. Em um simbolismo interessante, isso se dá não por meio da violência, mas sim pela sua ausência. Porque ele não a salva de ninguém, mas sim de si mesma, ao impedir que ela mate o próprio pai por vingança ao que ele fez à sua mãe, amiga e à si própria, mostrando que o personagem está indo além da sua limitada visão inicial, escolhendo outros caminhos que não a vingança.
E, tal qual os atos iniciais do Homem-Morcego serviram de motivação para o vilão da história, suas novas ações inspiram outros. Dessa vez, é ele quem é salvo, tanto por Selina, quando estava sobrecarregado na batalha final do filme, quanto por Gordon, que impede que ele, cego pela própria fúria, viole a sua única regra: não matar.
Portanto, em que pese não se tratar de um “filme de origem” per si, ao trazer o protagonista a um mundo mais complexo, Reeves trabalha este roteiro como um (re)nascimento para o personagem. Discute-se, agora, como um homem com as características do Bruce Wayne/Batman, agora como duas personas distintas, pode ajudar Gotham a se reerguer. Algo além das respostas simplistas de se espancar criminosos de baixa “patente” ou meramente redistribuir sua riqueza – que, como o longa faz questão de mostrar, é uma clara armadilha fácil para um problema complexo, na qual inclusive o seu pai caiu.
A obra, então, funciona como um ponto de partida para estabelecer o que o herói pretende representar. Porque, quando o medo não é o bastante, a esperança acaba sendo a única saída, conforme o monólogo final demonstra:
“Eu causei um efeito, mas não o que eu pretendia. Vingança não mudará o passado. Nem o meu, nem o de ninguém. Eu tenho que me tornar mais. As pessoas precisam de esperança.”
Transformar medo em esperança parece ser o principal objetivo de Reeves na saga e, aqui, temos um ótimo início à essa transformação. Se será bem sucedida, não temos como saber, contudo, é louvável que ele tenha conseguido nos dar um novo ponto de vista a um personagem já adaptado tantas vezes às grandes telas. No momento temos apenas esperança de sucesso para que as sequências sejam tão boas quanto o antecessor, mas é certo que o acerto de O Batman também pode inspirar o gênero a se reinventar.
- [1] Possivelmente é abordado em HQs, mas o foco do texto são as adaptações cinematográficas.
Carioca, advogado e apaixonado por cinema. Busco compartilhar um pouco desse sentimento.