O Babadook – Um Estudo Sobre Depressão

1. Introdução

O Babadook é o primeiro longa metragem[1] da escritora/diretora australiana Jennifer Kent, lançado em 2014. Com foco em um pequeno núcleo familiar, ele acompanhamos a decadência mental de Amelia (Essie Davis), enquanto deve lidar com Samuel (Noah Wiseman), seu filho hiperativa, ao mesmo tempo em que tenta superar a morte de seu marido, ocorrida a quase seis anos. Contudo, ao interagir com um livro aparentemente inofensivo, ambos se veem assombrados por uma criatura que se esgueira pela casa e ameaça as suas vidas.

Uma narrativa que a princípio parece simples, revela-se complexa à medida em que passamos a analisar o roteiro com mais atenção. Todo o texto contido no livro Mister Babadook, objeto esse que, à primeira vista, era apenas um meio para se introduzir o monstro na história, é permeado por nuances e contém fortes alegorias a transtornos psicológicos, em especial transtorno depressivo maior, mais conhecido como depressão.

Dessa forma, o presente texto busca analisar a narrativa como um todo, abordar as principais metáforas e dissecar a trama em detalhes para descrever o modo como ela dialoga com esta doença tão perigosa. Portanto, deste ponto em diante, poderá haver spoilers no texto.

2. O Terror como Gênero

Antes de partimos para uma análise de O Babadook, é importante expor o porquê acredita-se que o terror seja, talvez, o melhor gênero para a difícil tarefa de representar um tópico tão sensível quanto este. Faz-se, então, uma curta análise do gênero e suas origens.

O terror sempre atraiu bastante atenção, não apenas no cinema como em todo meio de arte. Sua origem, ao menos documentada, pode ser rastreada até a Grécia antiga por intermédio de seu folclore local que, inclusive, ajudaria a sedimentar mitos europeus na posteridade, como Frankenstein.

A partir daí, o gênero não deixa de evoluir. No século XVIII, O Castelo de Otranto, do escritor Horace Walpole, é tido como o primeiro romance da chamada literatura gótica. Jamais deixado de lado, foi trabalhado por grandes nomes da escrita como Edgar Allan Poe, Mary Shelley e H. P. Lovecraft.

O gênero brinca com emoções intrínsecas ao ser humano, sendo a catarse que produz algo de extrema importância. O bater mais rápido do coração e o acelerar da nossa respiração nos remetem a tempos mais perigosos e nos ajudam a manter uma saudável cautela em nossa vida. O medo como instinto é não apenas útil, mas necessário. Nas palavras de H.P. Lovecraft:

“A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido.”

Avancemos alguns anos no tempo e a sua popularidade jamais desapareceu, com novas histórias sendo trazidas de forma constante. Fato é que ele se mostra, desde sempre, um ótimo condutor para narrativas, sobretudo pela sua capacidade de transmitir ao destinatário, seja leitor, seja espectador, críticas sociais e complexos problemas de convivência, muitas vezes por meio de uma interpretação mais metafórica e menos direta.

O expressionismo alemão, movimento artístico com auge na década de 20, foi responsável por grandes clássicos do terror que levantaram – e levantam – importantes questões. O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, é visto por Siegfried Kracauer[2] como um prelúdio à ascensão de Hitler no país. Metrópolis, de Fritz Lang, baseado no ótimo trabalho de sua esposa, Thea von Harbou, aborda interessantes questões de classes.

Em 1968, George Romero nos traz A Noite dos Mortos Vivos, por meio do qual expõe a problemática racial nos Estados Unidos. No mesmo ano, O Bebê de Rosemary[3] aborda questões referentes à libertação feminina em uma época na qual a pílula anticoncepcional ainda era uma invenção recente. Há, assim, quase que uma apropriação do gênero pelos movimentos sociais da época, que o utilizaram como um espelho à sociedade.

O gênero permanece dessa forma até hoje, uma vez que muitos dos “queridinhos” da atualidade, como Jordan Peele – Corra! e Nós –, Ari Aster – Hereditário e Midsommar: O Mal Não Espera a Noite – e Robert Eggers – A Bruxa e O Farol – utilizam-se de seus filmes como meios para realizarem comentários sociais. Contudo, conforme descrito acima, esta não é uma inovação, ao contrário, esta é a regra.

Em que pese a popularização do termo pós-terror, cunhado pelo jornalista americano Steve Rose em um artigo publicado pelo veículo The Guardian, a segregação do gênero não poderia estar mais equivocada. As novas histórias de modo algum renegam as suas influências do gênero, pelo contrário, uma vez que temáticas sociais estão intrinsecamente ligadas ao nascimento do terror.

Este é, também, o caso de O Babadook , por meio de sua clara influência do expressionismo alemão, bem como de cineastas clássicos como Georges Méliès e Segundo de Chomón. Portanto, o gênero se mostra não apenas apropriado à temática, mas quase necessário.

3. Letargia, solidão e conflito

É um tanto quanto complicado trazer debates à tona sobre uma doença como a depressão, justamente pela ausência de indicativos físicos. Dessa forma, sintomas passam facilmente despercebidos aos mais desatentos, que podem sequer perceber estarem doentes ou, ainda, que aqueles próximos a eles estejam.

Portanto, logo no início, a diretora busca imergir o espectador na letargia e solidão que é a vida da protagonista, trazendo-o para o universo de Amelia. Antes da subida do título, há um pequeno prólogo que exemplifica os principais aspectos de sua vida: (i) a memória do acidente que vitimou o seu marido – apesar da audiência ainda não saber o que ocorreu de fato – o qual, claramente, ainda não superou; (ii) a leitura de um livro infantil, que ressalta a afeição de Samuel por histórias de monstros e; (iii)a sufocante relação que tem com o filho, tendo em vista que a vemos se encolher na própria cama para fugir de seus avanços que, dormindo, tenta abraçá-la.

Desde o início, Kent nos apresenta a sua protagonista em uma posição na qual, por mais que esteja efetivamente acompanhada, permanece com uma sensação de solidão. Ao mesmo tempo, a diretora se utiliza de conflitos criados por meio da narrativa para reforçar o distanciamento da personagem.

Alguns confrontos são trazidos de modo a demonstrar sua inaptidão para lidar com simples questões do dia-a-dia. Primeiramente, evita qualquer discussão junto à escola de seu filho que, após levar uma arma caseira à sala de aula, é suspenso. Ela não se propõe a debater medidas alternativas junto aos educadores, ao contrário, apenas informa que irá retirar o seu filho da escola.

Há algo a ser dito, é claro, acerca do tratamento de certos colégios aos seus alunos, vendo-os apenas como meios para um fim. Contudo, por mais que a cena em si seja rápida, é impossível não entender a perspectiva dos educadores, afinal é inegável que Sam levou, a um ambiente de ensino repleto de crianças, uma arma que, ainda que caseira e rudimentar, poderia ferir gravemente tanto a si próprio quanto a seus colegas.

Este não é o único momento no qual Amelia foge de situações de confronto, de modo que ela se torna o denominador comum das ocorrências. Pequenos momentos, como o acidente de trânsito no qual se envolve e imediatamente foge, retratam a sua inabillidade para lidar com conflitos. Todavia, em nenhuma relação essa questão é mais explicitada do que no seu relacionamento com a sua irmã, Claire (Hayley McElhinney).

É fácil notar que em qualquer diálogo entre as duas a protagonista fica retraída, quase em uma posição inferior, bem como raramente se impõe. Dessa forma, acaba por acatar decisões com as quais não se mostra confortável, como a alteração da festa conjunta de seus filhos. Quando reage, deixa evidente a sua incapacidade de superar o trauma da morte do seu marido, o que reforça outra de suas incapacidades: conciliar-se com a morte do marido, em especial considerando ter ocorrido no mesmo dia de nascimento do seu filho.

Indagada se conseguiu seguir em frente após o acidente, diz:

“Eu segui em frente. Não menciono ele, não falo dele.”

Desnecessário dizer que essas não são as atitudes de alguém que superou uma tragédia. De alguém que seguiu em frente. O trauma da personagem molda a sua vida, sendo o evento catalisador de sua doença.

4. Mister Babadook

Após Sam pedir para sua mãe ler o livro Mister Babadook antes de ele dormir, somos introduzidos ao personagem título. Trata-se de um livro interativo, no qual imagens saltam das páginas à medida que o leitor interage com as “alavancas”. A princípio inofensivo, à medida que a narrativa se desenvolve conseguimos perceber as nítidas camadas ali dispostas.

Isto porque o duplo sentido das frases escritas acaba revelando-o quase como um diagnóstico da doença:

“Se está em uma palavra, ou está em um olhar…não pode se livrar do Babadook.”

Não há cura propriamente dita, apenas tratamentos, de modo que não é possível “se livrar”.

“Olhe pra ele em seu quarto de noite…e não poderá pregar um olho.”

A insônia, como demonstram alguns estudos recentes, pode ser um sintoma de transtorno depressivo ou, ainda, um prelúdio. No decorrer da história, vemos por diversas vezes Amelia lidar com o distúrbio.

“E quando você ver o que está embaixo… vai desejar estar morto.”

Há uma forte correlação entre o suicídio e a depressão. Por mais que não necessariamente caminhem juntos, estudos demonstram que a doença é uma das principais causas para o suicídio, de modo que as palavras do monstro servem como um perigoso presságio.

Após rasgar o livro e jogá-lo fora demonstrando, novamente, a falta de habilidade da protagonista para lidar com qualquer conflito e/ou relação estressante, Amelia o reencontra na sacada da porta de sua casa, com algumas alterações. Agora, a personagem toma o lugar da criança no livro e as mensagens se tornam mais enfáticas:

 “Apostarei contigo…te farei uma aposta. Quanto mais você nega…mais forte eu fico.”

A negação por parte das pessoas acerca da depressão é um problema em si mesmo. Seja pelo medo de sofrer com o estigma social da doença, seja pela própria pessoa considerar a condição como uma fraqueza, fato é que, ao negar o problema, o acúmulo acaba por piorar a situação.

“Me deixe entrar!”

“Você começa a mudar quando eu entro.”

“O Babadook  vai crescendo bem debaixo da sua pele”

Aqui, Kent traça um paralelo entre a doença e possessão, ocorrência muito comum no terror, com algumas diferentes interpretações. Isto porque, considerando que o monstro realmente existe, a doença de Amelia a deixa fraca o bastante a ponto de ser tomada por ele, o que seria uma possessão de fato. Outra, um pouco mais sutil, é como ter depressão pode transformar o doente em uma diferente versão de si mesmo(a), sendo, basicamente, uma possessão metafórica.

Por fim, antes de queimar o livro, encontra imagens violentas cometidas por ela contra seu cachorro, filho e eventual suicídio.

5. A (tentativa de) busca por ajuda

Um dos grandes problemas que envolvem a depressão é a dificuldade do doente em buscar ajuda médica. Não apenas por ser uma doença de difícil identificação mas, principalmente, por haver um tabu muito forte acerca do tema. Há um estigma, como se estar sujeito à esta doença fosse uma demonstração de fraqueza ou até mesmo frescura. Ao mesmo tempo, reconhecê-la é quase imprescindível na recuperação do doente, de modo que existe uma relação simbiótica entre os estes dois fatores.

Em O Babadook, Jennifer Kent aborda a problemática em duas situações distintas, uma logo após a outra: quando Amelia entra em contato com sua irmã e avisa que acha que está sendo seguida e, posteriormente, quando se dirige à delegacia de polícia para reportar o fato às autoridades. Em decorrência das ações da personagem, há tanto uma resposta das pessoas para se quem pede ajuda como, também, uma consequência exterior.

No primeiro caso, sua irmã rapidamente deprecia a sua súplica, dando pouca importância ao relato e apenas diz que, caso se sinta ameaçada, que deveria procurar a polícia. Aqui, importante ressaltar que, evidentemente, é impossível à Claire realizar qualquer ação efetiva para tentar impedir um possível assédio à protagonista. Ela simplesmente não tem os meios físicos para proceder com uma investigação ou até mesmo para fazer com que o possível infrator cesse com as suas ações. Amelia e a audiência têm plena noção disso.

Contudo, o modo como a cena é construída deixa evidente que a intenção da personagem jamais foi que Claire tomasse a linha de frente em sua proteção contra esse suposto agressor. Era meramente ser ouvida, sentir-se escutada e amparada por sua irmã, possivelmente que ela se oferecesse a acompanhá-la à delegacia.

Ao final da ligação, a primeira consequência ao pedido de ajuda: Amelia recebe uma chamada não identificada, na qual o responsável apenas diz, em tom ameaçador:

“Ba, ba…dook…dook…dook!”

Dessa maneira, Kent desenha uma relação entre as ações da protagonista e o contato do monstro, o primeiro sem ser por meio de seu livro: o pedido de ajuda tem consequências negativas ao doente, de modo que a ameaça do monstro funciona como um paralelo ao estigma imposto pela sociedade.

Imediatamente após o contato, Amelia se dirige à delegacia para buscar auxílio das autoridades. A dificuldade da polícia em enxergar qualquer mérito no alegado por ela espelha, novamente, a descrença que aqueles com a doença enfrentam ao tentar encontrar ajuda. Ainda, a protagonista é novamente punida ao ver, pela primeira vez, a manifestação física do monstro, disfarçado junto a um cabideiro:

Sobre a cena, importante destacar que há todo um subtexto relativo à dificuldades que mulheres passam para relatar qualquer tipo de violência à polícia, com o riso do policial ao fundo servindo de clara demonstração sobre o modo como muitos não são receptivos às alegações femininas.

Acredita-se que o principal objetivo de O Babadook seja, de fato, realizar uma análise da depressão por meio de metáforas clássicas ao gênero do terror. Contudo, isso não impede Kent de abordar outras temáticas relevantes, especialmente ao sexo feminino como um todo, ainda que pontualmente.

6. Estética e orçamento

O Babadook foi o primeiro longa metragem de Jennifer Kent, cujos únicos trabalhos anteriores na cadeira de direção foram um curta intitulado Monster[4], lançado em 2005, bem como um episódio da série australiana Nada é o que Parece, em 2006. Dessa forma, é justo dizer que o seu nome ainda não era conhecido no meio, ao menos não de modo a justificar fortes investimentos.

Estima-se que o orçamento do filme foi de apenas US$ 2.000.000,00 (dois milhões de dólares), quantia essa relativamente pequena para uma empreitada do gênero. Apenas a título exemplificativo, destaca-se que o orçamento estimado de Corra!, Hereditário e A Bruxa, citados no decorrer do texto foi de, respectivamente, US$ 4.500.000,00 (quatro milhões e quinhentos mil dólares), US$ 10.000.000,00 (dez milhões de dólares) e US$ 4.000.000,00 (quatro milhões de dólares).

A falta de capacidade financeira, todavia, não serve de empecilho à narrativa, pelo contrário. Kent aproveita para integrar o pequeno orçamento ao texto, dando-lhe significado à história. Isto é, menos locações são utilizadas, reforçando o senso de isolamento da protagonista, praticamente confinada à sua própria casa refletindo, então, o terror que vem de dentro tão característico da década de 60 nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a deterioração da residência acaba por servir de paralelo ao estado mental debilitado de Amelia, sobretudo pela sua relutância em lidar com a sua doença, pior, sequer aceitá-la como real.

O orçamento, também, força a estética do filme a algo quase desprovido de efeitos especiais, de modo que se sustenta com um inteligente uso de sombras e efeitos práticos que conferem à obra um quê de expressionismo alemão. Ainda, a diretora se vê forçada a criar composições de câmera inusitadas e criativas que, de outra maneira, poderiam sequer ser consideradas – destaca-se, em especial, a inversão de pontos de vista que ocorre no clímax da história –, afinal, a necessidade é a mãe da invenção.

7. A televisão como elemento narrativo

Conforme já apontado em tópicos anteriores, no filme, a diretora se utiliza da insônia da protagonista como meio de destacar a progressão de sua doença. Dessa forma, Amelia se vê quase forçada a assistir televisão de modo a lidar com a falta de sono. Aproveitando a oportunidade, Kent se utiliza do conteúdo da televisão de modo a nos fornecer mais acesso ao estado de espírito da personagem, sempre de modo a reforçar as muitas temáticas narrativa de O Babadook.

Há três momentos específicos dignos de destaque nos quais o foco da cena permanece em Amelia, mais trabalhados abaixo:

7.1 Frustração sexual

Novamente focando em problemas adjacentes da temática feminina, Kent se utiliza da premissa d’O Babadook para abordar a frustração sexual de sua protagonista. Amelia perdeu o marido há quase seis anos e, ao menos pelo que se percebe em tela, não teve novos parceiros desde então.

A primeira utilização da televisão como elemento narrativo do filme se dá logo após a personagem encontrar, e ler, a história a seu filho. Aqui, tudo remete a sexo: a propaganda hipersexualizada de um tablete de chocolate; a oferta de disk sexo e; um beijo apaixonado em um romance clássico.

Por meio deste pequeno elemento narrativo, a diretora consegue passar à audiência a frustração sexual da personagem, reforçando-a no decorrer do longa. Logo após a cena da TV, por exemplo, tenta se satisfazer sozinha quando acaba por ser interrompida pelo seu filho.

Traça-se, portanto, uma relação entre a sua insatisfação sexual e a sua condição de mãe. Este entendimento é, inclusive, reforçado mais adiante, quando acaba por espiar um casal em um carro no shopping – sem Sam – ou, ainda, quando seu filho, inadvertidamente, interrompe o contato de sua mãe com seu colega de trabalho, até aquele momento um possível parceiro sexual – com Sam.

7.2 Sonhos e referências

Na segunda sequência utilizando a TV como instrumento narrativo, Kent, primeiramente, nos provoca com outra cena romântica apenas para, logo após, subverter nossas expectativas com uma construção um tanto quanto diferente do que esperávamos. Agora, o foco não é no sexo – ou falta de –, mas sim em elementos de sonhos e referenciais.

A partir deste momento, a insônia de Amelia, como fator relevante da história, passa a se desenvolver, tudo por meio dos programas transmitidos pela televisão. Em tela, imagens que remetem ao onírico, acompanhadas por uma trilha sonora que quase é uma canção de ninar. Há um misto de realidade e ficção que representa a dificuldade da personagem em distinguir os aspectos da sua vida.

O foco, porém, fica na referência à obra La Maison Ensorcelée, do diretor Segundo de Chomón, uma das primeiras incursões cinematográficas na premissa de casa assombrada, e na recriação do filme Le Livre Magique , de 1900, do grande Georges Méliès. Na história, o protagonista traz, em um cavalete, um grande livro do qual consegue “retirar” personagens e, eventualmente, devolvê-los ao livro. Aqui, porém, o personagem do livro é substituído pelo próprio Babadook, o que funciona de forma metalinguística aos eventos do longa.

7.3 A depressão como possessão

A última sequência conta com a maior quantidade de informações. Primeiramente, vemos um trecho de um desenho animado, direcionado a Sam, no qual um lobo se veste em pelo de cordeiro. Há um quê de conto de fadas na cena, o que nos remete à primeira história contada por Amelia a seu filho, no início do filme. Uma lembrança de que, por mais que tenhamos convencionado histórias do gênero como saudáveis à crianças, não deixam de conter a sua quota parte de violência.

Ao mesmo tempo, o ato do predador de se travestir de presa deixa claro o título deste subtópico: a tratativa da doença como uma espécie de possessão ao doente. A cena se desenvolve nesse sentido, pois logo após a protagonista assiste a uma reportagem sobre um infanticídio, apenas para ver a sua imagem televisão, como uma espécie de assombração. Não à toa a cena precede à suposta possessão da protagonista[5].

De tal maneira, a diretora reforça a metáfora referente à doença funcionar como uma espécie de possessão, subvertendo a personagem e exercendo domínio sobre a sua própria vontade, fazendo com que cometa atos que, em condições normais, não cometeria.

8. Possibilidades de encerramento

A despeito de manter um brilhantismo quase que constante nos seus 94 minutos de duração, muitas pessoas que assistiram a’O Babadook parecem ter um problema específico com o seu encerramento. Alguns entendem que o final é abrupto, outros o vêem como sendo pouco sério. Contudo, por mais que, certamente, possa haver divergências de opinião acerca do tema, considerando que a questão metafórica permeia a narrativa, entendemos como justo também aplicá-la ao seu término, o que acrescenta mais camadas às cenas finais.

De toda forma, primeiro é curioso notar como há, pelos menos, três outros momentos nos quais a história poderia ter sido encerrada sem maiores prejuízos à narrativa. É claro, algumas pequenas adaptações teriam que ser feitas, mas são facilmente realizáveis e não comprometeriam a estrutura do roteiro, ao menos superficialmente. Contudo, a mensagem da história, a temática abordada por O Babadook perderia nuances importantes que dependem, justamente, do final que teve.

8.1 “Primeiro final”

A primeira possibilidade nos apresenta a vitória sobre o monstro por meio de um estímulo externo. No caso, após a “possessão” de Amelia, a Sra. Roach, sua vizinha, bate à sua porta e conversa com a protagonista:

 “Eu sei que essa época do ano é muito difícil para você. E eu sei que você não gosta que eu fale sobre isso, então não irei. Eu só queria que você soubesse que eu faria qualquer coisa por você e o Sam. Eu amo vocês dois.”

Aqui, há a possibilidade de se encerrar a história. O estímulo externo dado pela sua vizinha poderia forçar a personagem a se livrar de sua possessão ou, em termos interpretativos, perceber que precisava buscar ajuda para tratar de seu estado mental. Há, porém, alguns fatores que fazem com que a escolha esteja longe de ser a melhor opção: a “facilidade” com que surge e a utilização de um personagem estranho ao núcleo familiar como solução do conflito.

Isto porque, por mais que a personagem da Sra. Roach seja extremamente carismática – fruto de um ótimo trabalho por parte de sua intérprete Barbara West que confere uma forte autenticidade ao papel –, fato é que possui pouco tempo de tela. Ainda, a doença de Amelia está intrinsecamente ligada à sua maternidade, motivo pelo qual a sua solução deve, necessariamente, passar pela sua relação com seu filho para que haja a catarse devida.

8.2 “Segundo final”

Seguindo adiante, ocorre o embate entre Samuel e sua mãe, que termina com Amelia amarrada no porão. A criança tenta, então, recuperar a sua mãe, em um diálogo semelhante ao da Sra. Roach, porém mais impactante justamente em decorrência da conexão emocional entre os dois personagens:

“Eu sei que você não me ama. O Babadook não te deixa. Mas eu amo você, mãe. E sempre amarei.”

Assim como no subtópico acima, há um estímulo externo – bem mais poderoso – que, com poucos acréscimos, poderia também encerrar o filme. Nessa opção há catarse na relação mãe/filho, mas a protagonista continua passiva na solução de seus próprios conflitos internos, o que vai de encontro à temática do longa.

8.3 “Terceiro final”

Na terceira possibilidade, Amelia é forçada a ser mais assertiva. Após “expelir” o Babadook, o monstro permanece na casa, rapta Sam e o levando ao seu quarto.

Para tentar recuperar o filho, levado ao quarto pelo monstro, a protagonista finalmente encara o trauma de frente. Ela testemunha novamente a morte do marido, tema que evita desde o começo do filme e, quando vê Sam ser ameaçado pelo Babadook, consegue efetivamente enfrentá-lo, demonstrando não mais fugir de conflitos:

“Você está invadindo a minha casa! Se tocar no meu filho de novo eu te mato”

Pela primeira vez no decorrer do longa ocorre uma troca no ponto de vista da câmera. Após o embate, a diretora nos transporta para os olhos do monstro, primeiro de forma a tentar afirmar o seu domínio, mas ao fracassar, apenas foge, o que demonstra a alteração na dinâmica de poder da cena e, por extensão, justifica a troca de perspectiva da câmera. O monstro não está mais no controle.

Neste “final”, há (i) a resolução da relação mãe/filho, (ii) o confronto com o trauma (iii) e o reforço da assertividade de Amelia, motivo pelo qual, ao menos em tese, não haveria porquê dar seguimento à história. O monstro, contudo, esconde-se no porão e permanece na casa e o filme continua.

9. O final (e porquê funciona)

Há algo em comum às três opções indicadas acima e é, justamente, a característica que as coloca em um patamar menos apropriado para o texto de Kent: a expulsão do monstro é definitiva. Após o embate, muitos filmes reconheceriam os problemas da família como encerrados. Contudo, há mais camadas em O Babadook, isto porque realizar uma alegoria com uma enfermidade como a depressão faz com que seja necessário que se tenha maior tato em sua resolução.

O monstro permanece no porão da casa porque Amelia não está, necessariamente, curada. Por mais que haja uma cura para a doença, o perigo dela retornar permanece. Após o clímax da história, a protagonista consegue ter um relacionamento mais saudável com seu filho e, a despeito da dor da perda de seu marido, consegue referenciá-lo em voz alta, fazendo alusão a Sam, aquele que via, ao menos até aquele momento, como causador de sua trágica perda.

No jardim, Kent mostra à audiência o cachorro da família enterrado, um lembrete dos acontecimentos que transcorreram no filme. Assim como o Babadook, ele está “embaixo” da residência, uma realidade com a qual a personagem terá que lidar e, em um ótimo uso de contra-plongée, a diretora sobe a câmera e nos apresenta uma única rosa negra em contraste com a vegetação mais viva.

Ao visitar o porão, Amelia leva oferendas à criatura em uma ação quase ritualística. Novamente, há a inversão do ponto de vista da câmera e vemos a protagonista, mais uma vez, manter a assertividade. É uma convivência necessária, na qual ela reconhece o Babadook como parte de si mesma, ao mesmo tempo em que busca reforçar o seu controle sobre a sua condição.

Na última cena, há algo de triste em tela. Outra vez ocorre um reforço dos acontecimentos passados, quando Sam comenta sobre suas contusões. O tom final do filme é de otimismo, disso não há dúvidas, mas Kent consegue trazer o nível certo de melancolia para torná-lo mais memorável, porque lidar com a doença será um trabalho constante à personagem.

10. Conclusões

O Babadook é um grande exemplo de como se utilizar dos arquétipos do terror de modo a aumentar o debate acerca de temas de relevância social. Semelhante a outros clássicos do gênero, a história cresce à medida que destrinchamos seu roteiro e a analisamos comparativamente à sociedade atual.

Jennifer Kent é reconhecida por pessoas que acompanham o gênero, mas é uma infelicidade que não tenha reconhecimento por espectadores mais convencionais, a despeito de uma estreia no circuito de longa metragens tão interessantes quanto O Babadook.

De toda forma, felizmente se mantém no cenário, escrevendo e dirigindo, o que é ótimo para o Cinema, ótimo para o terror e ótimo para os espectadores.


[1] A diretora foi responsável, em 2019, pelo filme The Nightingale, seu segundo longa metragem. Atualmente tem seu nome vinculado ao projeto de nome Alice + Freda Forever, ainda sem previsão de estreia.

[2] Recomenda-se, aqui, seu livro De Caligari a Hitler: Uma História Psicológica do Cinema Alemão.

[3] Impossível não mencionar que, a despeito da produção de um dos maiores clássicos do gênero, inclusive que aborda uma temática quase que estritamente feminina, Roman Polanski está longe de ser o tipo diretor que deve ser glamourizado, tendo se declarado culpado por cinco crimes contra uma criança de treze anos, incluindo estupro com uso de drogas.

[4] O curta, inclusive, funciona como uma versão crua de O Babadook.

[5] Importante destacar que, logo após, retornamos à televisão, cena na qual Amelia assiste a um filme que, também, passa à audiência a impressão de tratar de possessão.