2017 foi um grande ano para o cinema. Além das grandes obras de alta qualidade, o debate sobre assédio, machismo e racismo se intensificou acentuadamente, tendo inclusive criado uma sensação de que a impunidade que havia antes está para terminar, vide Harvey Weinstein. Porém, não é função desse texto adentrar nessas questões sensíveis neste momento, e sim debater duas grandes obras do ano anterior que, apesar de terem premissas e resultados diferentes, compartilham da mesma duplicidade: a do criador e sua musa. Estou falando de Mother! e Phantom Thread.
Apesar de musas e musos inspiradores serem algo comum em todos os tipos de arte, como por exemplo, na literatura tem-se o casal Fitzgerald, em que Zelda era a grande inspiração de Scott, ou Arthur Rimbaud, que inspirou artistas como Bob Dylan e Jim Morrison, no cinema não é diferente. Pegue o caso de Mother!, em que temos uma grande metáfora religiosa sobre a criação do mundo, com o casal formado por Javier Bardem e Jennifer Lawrence, Deus e Mãe Natureza respectivamente. Ele, um poeta que está sofrendo de um bloqueio criativo, e ela, como a amorosa esposa que quer trazer uma vida nova para a casa só para o marido ser capaz de escrever sua nova obra. Deixando todo o simbolismo e metáforas de lado, temos a musa do poeta, sua inspiração, seu alento criativo e como ele utiliza esse seu estímulo para escrever um texto que toca cada pessoa de uma forma. O problema está em como a relação dos dois é executada na tela. Ele não se importa com a opinião dela, sendo clara a relação abusiva entre os dois em diversas cenas, como por exemplo a cena em que ele faz sexo (estupra) ela e como acontece uma normalização disso ao mostrar que após a personagem relutar ela aceita a situação e começa a sentir prazer (?). E, apesar de ele ser Deus todo poderoso, ainda há a necessidade da personagem da Mãe Natureza. Sem ela não seria possível ele personificar suas criações e acaba sendo algo crucial e inerte ao seu personagem, mesmo que ele negue isso veementemente. Afinal, como criar algo sem haver o campo? É como se ele desenhasse e não tivesse o papel.
Obviamente, um diretor do calibre de Darren Aronofsky quer e consegue chocar o público. Seja pela intensidade do que está sendo mostrado em tela ou seja por suas sacadas no roteiro, ele atinge o seu objetivo utilizando seus dois personagens principais. O problema desse filme talvez tenha sido a pretensão de se questionar muitas coisas através de uma metáfora que soa um pouco confusa em um primeiro momento e, como se não bastasse, o diretor menospreza o espectador no final do filme, quando Bardem revela a Lawrence que ela era a casa. Basicamente, esse charme intelectual que o filme tem se perde, e por isso é justificável não ter caído nas graças de todo mundo. Talvez seja grande demais para mentes pequenas, ou foi feito apenas para os cultos da sétima arte. Contudo, é inegável que Aronofsky atinge seu objetivo ao deixar o filme na cabeça de todos, diferentemente de um outro filme que recebe essa mesma dualidade dos personagens: Phantom Thread.
Neste novo longa de Paul Thomas Anderson fica em evidência o fator da inspiração, pois o personagem de Daniel Day-Lewis cria seus vestidos através de suas musas, acabando por suas peças serem únicas e ele ser o estilista da aristocracia britânica mais requisitado. Nessas idas e vindas de musas na sua vida, ele conhece a jovem Alma, que acaba por revirar seu mundo por completo. Inicialmente ela é apresentada como uma personagem contida e tímida, em contraste ao personagem metódico e calculista de Day-Lewis, porém no decorrer do filme a relação dos dois toma contornos profundos e sombrios que acaba influenciando toda a estrutura funcional do personagem. Além disso, Alma possui as medidas perfeitas, como diz o próprio estilista no filme, o que faz com que ele se torne ainda mais obcecado por ela. O amor dele por ela, concisamente falando, surge após Alma recuperar um dos vestidos em uma situação um tanto quanto curiosa. Porém conforme o filme avança, Alma vai mostrando sua verdadeira personalidade e acaba gerando conflitos e embates com o estilista, até chegar em uma conclusão a la David Lynch, algo que chega a beirar uma insanidade totalmente compreensível. A necessidade de Alma para o estilista é mais escancarada aqui do que a da Mãe para Deus, pois no longa de Anderson é criada uma relação mutualística, em que ambos negam um para o outro mas sabem que são necessários juntos. Enquanto em Mother!, a Mãe necessita de Deus e deixa isso claro para Ele, enquanto Deus precisa da Mãe, porém nega de todas as formas possíveis essa insuficiência, sendo que nos poucos momentos em que ele corresponde a expectativa da Mãe, ela se torna radiantemente eufórica.
E, a diferença entre ambos os longas, repetindo, apesar de terem premissas diferentes, é a pretensão que ambos os diretores tiveram. Mother! é um grande filme sim, poderia ser maior senão fosse a ambição de Aronofsky, enquanto o filme de Anderson não tenta questionar nada, apenas contar uma história, executada de forma primorosa, sobre essa dualidade do artista e a musa. Com isso, apesar de serem longas que serão lembrados no futuro, podendo se tornarem filmes clássicos pois possuem qualidade para isso, é claro o motivo pelo que um foi aclamado e o outro dividiu a todos. Quando alguma obra nasce com o intuito de se tornar grande, ela pode acabar se perdendo dentro dela mesma e ruir por si só. Apesar de Mother! ter conseguido desviar parcialmente disso, é incontestável que se ela fosse concebida de uma forma mais modesta atingiria um crescimento maior conforme o tempo, tal qual será a obra de Anderson. Mother! atingirá o patamar de um dos filmes que serão mais cultuados nos anos seguinte, porém com o grande fator de ame ou odeie.
Apaixonado por cinema, amante das ciências humanas, apreciador de bebidas baratas, mergulhador de fossa existencial e dependente da melancolia humana.