Crítica | Nunca Raramente Às Vezes Sempre (Never Rarely Sometimes Always) [2020]

Nota do Filme:

A primeira sequência de Nunca Raramente Às Vezes Sempre se passa num show de talentos de um colégio. Autumn (Sidney Flanigan), de 17 anos, está com um violão e canta “He’s Got The Power”, música dos anos 60 interpretada pelo grupo The Exciters. Ninguém vê, mas este é um pedido de socorro, uma tentativa desesperada de que alguém, em algum lugar, entendesse que ela precisa de ajuda. Infelizmente, tudo o que consegue é que um colega de turma a chame de “vadia”.

Autumn é apenas mais uma mulher hostilizada, ignorada e silenciada por uma sociedade que faz vista grossa com homens e suas atitudes opressoras. Sabendo que não vai receber apoio, ela prefere se calar e viver sozinha uma dor que ninguém a preparou para sentir: a de uma gravidez indesejada. Não sabemos exatamente o que aconteceu, mas nada disso importa. O que Nunca Raramente Às Vezes Sempre quer é te fazer sentir o desconforto e a vulnerabilidade de ser mulher para mostrar que devia ser direito nosso tomar decisões sobre nosso próprio corpo.

Em defesa do direito de escolha

É com muita empatia e respeito que a diretora e roteirista Eliza Hittman conduz essa história, procurando não forçar explicações. Ao decidir não julgar a protagonista, ela só evidencia o quanto entende que os motivos que levam uma mulher a fazer um aborto nunca são fáceis ou simples. Para Autumn, está fora de cogitação se abrir com a família. Não conseguindo realizar o procedimento na cidade onde mora, ela precisa viajar com a prima Skylar (Talia Ryder) até Nova York, onde abortos são legalizados.

Mas ainda que receba a melhor assistência e realize o procedimento da maneira mais segura possível, será que ela tem mesmo todo o suporte que poderia receber? Como assegurar que ela vai estar protegida de outras violências? Todos sabemos que nada vai e que as coisas poderiam ser bem menos traumáticas e difíceis. Mas o objetivo aqui é justamente questionar uma sociedade misógina que prefere ver desamparada a mulher oprimida e “irresponsável”. E isso a diretora faz com maestria.

Opressão masculina como vilã

Seria muito fácil apelar para o melodrama ou recorrer a clichês de gênero, mas tudo é muito preciso. O maior mérito é que ela sabe bem usar a naturalidade e o realismo a seu favor para criticar na medida certa. Não é necessário um vilão de carne e osso para servir de antagonista, já que as figuras masculinas realizam bem o papel de assombrar a jornada das garotas. O roteiro constrói diversas situações em que homens são propositalmente violentos ou não fazem ideia que suas atitudes podem ser assustadoras.

Mesmo que não seja só para mulheres, inegavelmente elas vão identificar bem melhor essas angústias, como o medo da aproximação de um estranho ou de ser violentada no transporte público. A resposta para lidar com essas questões, o longa ensina, é a nossa união. Mesmo com todas as dificuldades e imprevistos, Skylar nunca larga a mão de Autumn, as duas estão juntas e dispostas a ajudar uma a outra. O roteiro enaltece essa amizade, contraponto perfeito à opressão masculina, e constrói um sentimento de força que se torna maior e mais importante que qualquer medo.

Um grito de socorro

A cada palavra não dita, cada gesto de amizade, Nunca Raramente Às Vezes Sempre cresce em significado, até culminar na cena que lhe dá título. É nela que Sidney Flanigan entrega aquele que deve ser o melhor momento do cinema em 2020, extravasando a introspecção da personagem e falando com o olhar muito mais do que conseguiria dizer em palavras. E nós a entendemos e acolhemos sua dor, finalmente ouvimos seu grito de socorro.

Não é para menos que Nunca Raramente Às Vezes Sempre foi categoricamente esnobado em premiações como o Oscar. É difícil que uma indústria construída e formada por homens brancos, ricos e pró-vida reconheça o mérito de filmes como este. Mas é justamente quando a sociedade decide ignorar uma obra que toca em diversas questões da vivência feminina que mais deveríamos dar atenção a ela.