Crítica | Vermelho Russo (2017)

O sistema Stanislavski, uma das principais sistematizações para o desenvolvimento da interpretação do ator, tanto no cinema como no teatro, foi criado pelo jovem russo Constantin Stanislavski no final do século XIX e consiste no estabelecimento constante da busca total da intimidade entre ator e personagem, para que haja uma identificação verdadeira entre ambos. Segundo o próprio Stanislavski, “Todos os nossos atos, mesmo os mais simples, aqueles que estamos acostumados em nosso cotidiano, são desligados quando surgimos na ribalta, diante de uma plateia de mil pessoas. Isso porque é necessário se corrigir e aprender novamente a andar, sentar ou deitar. É necessário a auto reeducação para, no palco, olhar e ver, escutar e ouvir”. Após a utilização da técnica, o ator é levado a realizar uma profunda análise acerca de si próprio acompanhado do conhecimento verdadeiro de seu personagem.

Baseado num diário de viagem da atriz Martha Nowill publicado na revista Piauí em março de 2009, Vermelho Russo é um filme que por vezes beira o documental ao contar a história de duas amigas, Martha (Martha Nowill) e Manu (Maria Manoella), que viajam para Moscou com o objetivo de estudar o sistema Stanislavski e, assim, aperfeiçoar suas técnicas de atuação. Após se envolverem num triângulo amoroso (um dos elementos ficcionais do filme), ambas começam a questionar a real validade da viagem e de suas motivações, tanto na vida pessoal como na profissional.

Segundo longa do diretor carioca Charly Braun, o filme trata sobre o que é ser ator e até que ponto o que acontece em cena pode interferir verdadeiramente no dia-a-dia do artista e vice-versa. Isso, claro, é uma construção de roteiro baseado de maneira intrínseca ao sistema Stanislavski. Uma forma encontrada pelo diretor de mostrar tal conceito de maneira quase didática é a repetição constante da mesma cena da peça de que Manu e Martha fazem parte. Por quase uma dezena de vezes, vemos as mesmas personagens repetindo as mesmas linhas de diálogo, mas com a diferença de emoções decorrentes dos momentos turbulentos e/ou atípicos que vivenciam durante sua estadia na Rússia, um país avesso ao Brasil no que diz respeito à cultura e principalmente ao clima. Clima esse que interrompeu as gravações algumas vezes por congelar a câmera ou simplesmente os pés das atrizes, conforme contam em entrevistas bem-humoradas relembrando os “perrengues” que tiveram de enfrentar tanto na primeira viagem como na segunda, na qual as gravações do filme foram realizadas.

O filme acerta ao manter o tom de documentário no primeiro ato. A câmera na mão é utilizada para retratar as rotinas dos personagens, suas primeiras impressões do país e principalmente suas dificuldades. A barreira do idioma logo aparece ao acompanharmos as duas na saga para encontrar o restaurante mais próximo, combinar o preço com o taxista ou apenas em tentar conversar com a recepcionista do hotel e com seus hóspedes. O hotel, inclusive, é umas das minhas partes favoritas da obra. Um retiro para artistas que um dia fizeram sucesso no país, o local abriga senhores de mais de 80 anos que tem histórias muito interessantes para contar sobre suas vidas e, principalmente, sobre a sétima arte. Pena que essa ideia não pareceu cativar tanto o diretor. Tanto que no segundo e terceiro atos, o filme começa a se transformar numa ficção típica, até mesmo formuláica. Tudo vai bem e parece estar as mil maravilhas até que um homem, interpretado por Michel Melamed, aparece para causar uma crise emocional e até existencial nas personagens. Manu, que se relaciona de maneira superficial com o namorado por Skype, vê cada vez mais seu sonho de atuar em um filme do diretor Héctor Babenco ficar mais distante. Já Martha, começa a questionar o porquê sempre representa a personagem que está fora dos padrões de beleza da sociedade e é considerada a feia, enquanto que sua melhor amiga é venerada por todos e causa encantamento apenas com o olhar.

Mesmo com o ritmo do filme sendo seriamente afetado pela mudança brusca de tom imposta pelo roteiro, as atuações fazem tudo fluir de forma orgânica e verdadeira. Martha Nowill, que já tinha surpreendido e roubado a cena no excelente Entre Nós (2013) cria uma personagem – ao mesmo tempo é uma representação dela própria – que é um furacão que emana sentimentos, inseguranças e o desejo de ser desejada. Já Maria Manoella, interpreta uma mulher forte, que internaliza seus sentimentos mesmo carregando consigo de forma evidente uma boa dose de preocupação e insegurança. Vale também o destaque para os atores Esteban Feune de Colombi, um diretor argentino que acompanha e filma o dia-a-dia dos atores do curso sob o pretexto de estar montando um documentário a respeito; Mikhail Troynik, um ator russo que traz uma ingenuidade e uma verdade nos poucos minutos que está em cena; e por fim, mas não menos importante, todo o elenco de apoio, tanto do hotel quanto do teatro, que ao atuar de forma natural e beirando o amadorismo, traz o filme novamente para o tom documental que dava tão certo no início.

Vermelho Russo é um filme com uma bela fotografia (que no primeiro ato é explorada por meio de takes contemplativos, belos, mas que parecem vazios por funcionar apenas como um elemento de transição entre uma cena e outra), atuações sólidas e um roteiro que, mesmo problemático, pesca a atenção do espectador e mostra Moscou sob um outro prisma, deixando uma grande vontade de visitar a cidade e de acompanhar algumas aulas do tão famoso curso Stanislavski.