Nota do filme:
Fez toda a diferença ter mulheres por trás da produção de Um Lugar Bem Longe Daqui. Escrito pela americana Delia Owens, o best-seller que vendeu mais de duas milhões de cópias e originou o filme que estreia na quinta-feira (01/09) tem como protagonista uma jovem mulher livre, em todos os sentidos da palavra. Abandonada pela família ainda criança, Kya cresce sozinha em meio à natureza, aprendendo tudo o que pode sobre aves e insetos e fugindo de qualquer contato com a população preconceituosa de Barkley Cove. Isso porque são muitas as gaiolas onde lutam para aprisioná-la, principalmente homens, tudo porque não entendem seu direito de ir e vir, seu modo de viver liberto e descomplicado. Só mulheres conseguiriam adaptar essa história para o cinema sem julgamentos, e essa é a principal virtude de Um Lugar Bem Longe Daqui.
Através de sua produtora Hello Sunshine, Reese Witherspoon comprou os direitos de adaptação, colocou Lucy Alibar (de Indomável Sonhadora) no roteiro e Olivia Newman (de Minha Primeira Luta) na direção, completando o time com a recente estrela Daisy Edgar-Jones. É com muita sensibilidade que conseguem captar a essência de Kya, os eventos do passado que a tornaram reclusa, sua solidão, por vezes, dolorosa e todo o amor pela natureza que a rodeia. Na teoria, é um longa que tem tudo para dar certo, mas alguns deslizes prejudicam a experiência, que se torna confusa e até um pouco maçante.
Logo nas primeiras cenas de Um Lugar, ambientado em 1969, ficamos sabendo da morte de Chase Andrews (Harris Dickinson), um dos jovens mais conhecidos e ricos da cidade. A polícia logo suspeita de assassinato e aponta Kya (Daisy Edgar-Jones) como principal suspeita. A jovem é presa e vai a julgamento, em parte porque fios de lã de seu gorro foram encontrados na camisa de Chase, em parte porque parece óbvio que a “Menina do Brejo”, como é conhecida, foi a responsável pelo crime. A partir daí, o filme intercala entre diversos tempos narrativos para contar quem é Kya e como seu nome foi associado de forma tão assertiva ao crime.
Felizmente, não é apenas por conta do drama de tribunal que Um Lugar foge das adaptações genéricas de algumas das centenas de livros de Nicholas Sparks. A visão feminina sobre a história faz diferença e impede que enxerguemos a protagonista apenas dentro de seus relacionamentos amorosos. Desde muito cedo ela presencia a violência e a falta de afeto por parte da família, aos poucos entendendo os motivos que fizeram com que todos a abandonassem. O filme consegue desenvolver bem o arco dramático da personagem, abordando a violência de maneira muito eficaz, deixando o espectador genuinamente interessado pela história.
Por outro lado, o mesmo não se pode dizer da metade do filme que se passa no tribunal. A escolha de revelar aos poucos o que houve entre Kya e Chase é justa, pois, querendo ou não, desperta a curiosidade. Porém o tiro sai pela culatra e o filme acaba não conseguindo sustentar o arco do assassinato sem dar ao público o contexto por trás de tudo. Com receio de revelar demais antes da hora, ele acaba entregando indícios sem qualquer importância e provas absurdas apenas para reafirmar que a condenação de Kya seria puro preconceito. Não faz nenhum sentido que ela seja presa e não dê sequer um depoimento, nem na delegacia, nem no próprio julgamento. São incoerências demais para sustentar um suspense, que, quando finalmente alcança sua grande revelação, termina perdendo bastante impacto.
A transição entre estes dois momentos da história também não é muito bem conduzida. Quando o filme deixa a vida pessoal de Kya e passa ao desenrolar do julgamento, temos a impressão de que se tratam de duas histórias diferentes. A falta de contexto prejudica muito a narrativa e chega a dar impressão que um roteiro linear, ainda que mais tradicional, pudesse favorecer a condução da trama. Mas a verdade é que Um Lugar faz uma boa escolha narrativa, seu erro foi não ter focado o suficiente em desenvolver os outros personagens ao invés de pensar apenas em sua protagonista. Eles apenas a orbitam quando, na verdade, poderiam potencializar a história da própria Kya.
Um Lugar Bem Longe Daqui possui uma história interessante e com muito potencial, porém é mal conduzida a ponto de prejudicar boa parte do que tem de bom e relevante. É um filme que deve agradar quem gosta de romances mais old-school, no estilo Nicholas Sparks, porém com a diferença de que consegue abordar com propriedade os sentimentos e temáticas que envolvem as vivências femininas. Infelizmente isso não é o bastante para que ele sustente como deve um drama de tribunal. A condução desta parte é apressada, não é bem conectada ao enredo principal e, sem o contexto adequado, torna-se vazia e desinteressante. Ainda é uma boa experiência, mas fica a sensação de que poderia ser melhor.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.